Público ou privado

O sucesso das ferrovias brasileiras é apresentado por especialistas e participantes do setor como resultado dos investimentos realizados pelas concessionárias, ou seja, pelas empresas privadas que assumiram o controle do sistema a partir de 1996. Além disso, há um consenso geral de que o fracasso da ferrovia nacional na segunda metade do século XX está relacionado ao baixo investimento estatal e má gestão da empresa pública RFFSA. São duas afirmações pouco realistas, que servem apenas para colocar em lados opostos o público e o privado.

O que a história tem demonstrado, no entanto, é que não há garantias de que a gestão privada das ferrovias é melhor do que a pública. Dois casos emblemáticos podem ser usados para demonstrar isso. O primeiro está relacionado às concessões ferroviárias britânicas e o segundo à situação da americana Amtrak, responsável pelo transporte ferroviário de passageiros de longa distância.

Os problemas das concessões privadas britânicas vieram à público após um grave acidente ocorrido em 2000, que vitimou muitas pessoas. Especialistas analisaram o caso e produziram diversos livros e artigos na tentativa de explicar porque as concessões privadas não estavam funcionando.

Andrew Murray, em seu livro Off the rails – Britain’s great rail crisis, relacionou diversos pontos que ajudaram a explicar os problemas na operação privada das ferrovias de passageiros. O modelo de concessão adotado na década de 1990 considerava que a subdivisão da malha em diversas empresas aumentaria a competição no setor de transportes de passageiros e melhoraria os serviços para os usuários. Empresas menores, segundo os defensores do modelo de privatização, seriam mais fáceis de gerir.

Seguindo o processo de privatização, os serviços de transportes, que entre 1948 e 1994 eram de responsabilidade da estatal British Rail, foram distribuídos em quatro grupos de empresas privadas: proprietária da infraestrutura, responsável pela manutenção da infraestrutura, proprietária de empresas ferroviárias e operadoras dos serviços de transportes. A fragmentação da malha e dos serviços em dezenas de empresas tornou a operação do sistema ferroviário muito mais complexa, principalmente na questão das obrigações e responsabilidades.

A privatização também contribuiu para o fim da cultura ferroviária existente, que sempre primou pela segurança das operações de transportes. Algumas concessionárias tinham como sócias empresas de ônibus, que levaram para as ferrovias modelos de gestão totalmente inadequados para a prestação de serviços de transportes por trem. A qualidade da manutenção ficou comprometida, também, pelos baixos investimentos realizados, já que a preocupação maior estava nos lucros da concessão, e o excesso de terceirização dos serviços.

As críticas à americana Amtrak, serviço estatal de transporte de passageiros criado em 1971, são constantes, principalmente porque ela continua apresentando déficits bilionários em seus resultados anuais. Os defensores da privatização propõem a subdivisão da empresa em empresas menores e a eliminação de trechos de menor tráfego, em áreas rurais, por exemplo.

Em Amtrak Privatization – The Route to Failure, Elliot D. Sclar procura demostrar que a Amtrak não deve ser gerenciada como um negócio, mas como um serviço público cujos benefícios sociais, ambientais e econômicos não podem ser contabilizados pelo sistema de cobrança de tarifas. Para esse pesquisador, governos investem em ferrovias devido à facilidade em alcançar o centro das grandes cidades, eficiência energética (baixo consumo de energia por passageiro), independência do petróleo, segurança nacional (transporte redundante) e questões ambientais.

Esses e outros exemplos mostram que a disputa entre os modelos de gestão público e privado não tem sentido, pois os objetivos de cada um deles são totalmente diferentes. Na escolha do melhor modelo, o que importa são os benefícios sociais, a satisfação dos usuários dos serviços e o equilíbrio entre todos os interesses envolvidos.

Gargalos logísticos

As discussões sobre novos investimentos em sistemas de transportes estão sempre relacionadas à necessidade de eliminar ou minimizar diversos gargalos existentes em várias partes do país. O termo gargalo logístico é muito utilizado atualmente, mas a realidade que ele representa é muito antiga. Quando fluxos de produtos ou pessoas não estão adequados de acordo com determinadas referências, os pontos de estrangulamento passam a ser considerados gargalos.

Esta é uma realidade presente em vários países, envolvendo todas as modalidades de transportes, seja para transporte de cargas como de passageiros. As restrições existentes podem estar relacionadas a limitações infraestruturais ou normativas. Como as necessidades dos países estão sempre em transformação, a organização dos territórios é constantemente alterada para eliminar os obstáculos que impedem ou limitam o fluxo de mercadorias, pessoas, informações e capitais.

Gargalo logístico é um conceito muito utilizado nos discursos para justificar os investimentos em sistemas de transportes mais eficientes, como as ferrovias. O assunto está muito limitado aos fluxos de produtos mais significativos, principalmente de commodities agrícolas e minerais. É historicamente localizado e tem prazo para ser eliminado. Quando um gargalo é equacionado, um outro é colocado no topo da lista de prioridades. Os gargalos podem ser verificados em todas as regiões do país, mas apenas alguns são efetivamente resolvidos.

No setor ferroviário, a prioridade das concessionárias no início das concessões estava relacionada às interferências das linhas férreas nos perímetros urbanos, que limitavam a velocidade dos trens. A solução foi construir alguns contornos ferroviários, tais como os de Araraquara (SP) e Três Lagoas (MS). Outros ainda aguardam o início ou a conclusão das obras, como os contornos das cidades de Joinville (SC), São Francisco do Sul (SC), Ourinhos (SP), Divinópolis (MG), Jaraguá do Sul (SC). O mais esperado de todos é o Ferroanel, na região metropolitana de São Paulo.

As velocidades dos trens no país ainda são muito baixas devido a outras limitações infraestruturais, tais como dificuldade de integração da malha antiga com a nova, baixa qualidade da malha existente (traçado e manutenção), qualidade duvidosa da malha nova recentemente construída e centenas de passagens em nível ainda sem sinalização.

Mas os gargalos logísticos mais difíceis de solucionar são os de caráter normativo ou que tratam das relações entre os agentes participantes do setor ferroviário. Há diversas questões não resolvidas, que atrapalham ou prejudicam o funcionamento das ferrovias. São eles: contratos de concessão que privilegiam a operação do sistema e não a prestação de serviços, monopólio no controle e operação do sistema e dificuldade de acordos sobre direito de passagem e tráfego mútuo.

Os gargalos apresentados colaboram negativamente para a construção de um sistema ferroviário integrado, voltado para a prestação de serviços, atendendo de forma mais ampla outros setores econômicos e transportando uma maior variedade de produtos.

Passagem em nível em Sumaré (SP)

Matriz de transportes no Brasil

Os investimentos propostos nas últimas duas décadas em infraestruturas de transportes indicam para o aumento da participação de ferrovias e hidrovias no transporte de cargas e uma redução na utilização das rodovias. A retomada das ferrovias verificada a partir da década de 1990 está contribuindo para a reorientação da matriz de transportes, que tem a rodovia como a modalidade mais utilizada.

Uma das justificativas para a mudança desta matriz está relacionada à necessidade de utilizar opções de transportes mais eficientes e competitivas, principalmente quanto à redução dos custos envolvidos. É praticamente um consenso a ideia de que a matriz de transportes brasileira está desbalanceada, principalmente quando comparada com a de outros países de dimensões continentais semelhantes, como os Estados Unidos da América e a Rússia.

Mas as discussões sobre a matriz de transportes são limitadas a determinados interesses, principalmente àqueles que priorizam a inserção competitiva de produtos de grande volume e baixo valor agregado nos mercados internacionais. É fundamental, no entanto, analisar o assunto de uma forma mais ampla, destacando outras questões relevantes e fundamentais.

Primeiramente, é importante entender o que a matriz de transportes representa. Ela é o resultado de embates, confrontos e consensos entre todos os interessados na movimentação de cargas e pessoas no país. As modalidades de transportes atendem uma variedade muito ampla de interesses, portanto é prioridade de todos. Em segundo lugar, não se deve pensar na readequação da matriz de transportes sem considerar as diversas implicações que esta mudança pode acarretar nos outros serviços de transportes disponíveis.

No século XIX, por exemplo, a modalidade de transporte hidroviário foi praticamente esquecida no país quando as ferrovias começaram a ser introduzidas. Para os usuários que eram dependentes do transporte fluvial, esta mudança foi muito prejudicial. Em meados do século XX, os usuários de ferrovias também foram prejudicados com a introdução das rodovias. Diversas cidades, dependentes dos trens, praticamente sumiram do mapa com o início do transporte rodoviário.

A mudança desta matriz implica, também, na alteração de prioridades, interesses e orçamentos, promovendo modalidades de transportes que não são necessariamente utilizadas pela sociedade de uma forma geral. Uma possível priorização ou migração dos orçamentos relacionados às infraestruturas de transportes para as ferrovias e hidrovias, que são amplamente funcionais aos interesses de grandes grupos econômicos e empresariais, pode prejudicar a melhoria da malha rodoviária atual, cuja expansão verifica-se ainda incompleta no território brasileiro.

A matriz de transportes deve ser mais equilibrada no sentido de atender o máximo possível de interesses. Apesar disso, praticamente todos os planos e políticas de transportes no país buscam a readequação desta matriz seguindo o mesmo discurso de modernização do território que privilegia apenas alguns agentes, setores econômicos e regiões.

MRS Logística em Bueno de Andrada, Araraquara, SP

Ferrovia e desenvolvimento

A contribuição dos sistemas de transportes para o desenvolvimento econômico e social de uma região ou país parece ser uma certeza consagrada para grande parte dos estudiosos e formuladores de políticas públicas. É uma questão que tem gerado muitas dúvidas, já que a realidade constatada em várias partes do país é muito diferente das promessas.

Esta relação é utilizada há muito tempo em diversos países, tendo como referência os trabalhos realizados pelo Conde de Saint Simon e seus discípulos no século XVIII que trataram do planejamento do território da França. Para este estudioso, as redes de transportes irrigariam e trariam vida para todo o território francês, beneficiando toda a sociedade. Para Saint Simon, o território funcionaria como um organismo e as redes de transportes como artérias.

A aplicação desse conceito, no entanto, não pode ser verificada na prática. As funções de um organismo são definidas a partir de um programa muito bem estabelecido. Quando umas das partes do organismo faz uma solicitação, os fluxos são acionados automaticamente. Nos sistemas de transportes, as funções que controlam os fluxos não são acionadas automaticamente, mas de acordo com leis e regras definidas pela sociedade, expressando desejos, planos e necessidades muito particulares.

Há muitos exemplos que demonstram que não existe esta relação direta entre sistemas de transportes e desenvolvimento. O primeiro deles pode ser representado pela Estrada de Ferro Carajás (EFC). É uma das ferrovias mais produtivas, modernas e eficientes do mundo, mas atravessa dois estados com os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, Maranhão e Pará. É uma ferrovia que, na escala nacional e global, contribui para a atividade exportadora de commodities minerais e agrícolas. Porém, na escala local, entre Parauapebas (PA) e São Luís (MA), há um grande vazio em que impera a pobreza e a miséria.

O segundo exemplo é o oposto do primeiro. O estado de São Paulo, que possui os melhores índices econômicos e sociais do país, não é um grande usuário de ferrovias. Um volume expressivo de cargas ferroviárias que atravessam o estado são de grãos originados na região Centro-Oeste.

Apesar da realidade mostrar o contrário, esta relação ainda é amplamente utilizada nos meios acadêmicos, empresarial, governamental e de comunicação. A construção da Ferrovia Norte-Sul, realizada recentemente no estado de Tocantins, é um bom exemplo. Ao longo da BR-226, entre o sul e o norte do estado, diversas placas anunciavam que a ferrovia estava chegando ao estado. A mensagem, realizada pelo Governo Federal e Ministério dos Transporte, dizia “O desenvolvimento chega de trem ao Tocantins”.

Muitos outros exemplos demonstram que a relação apresentada não existe de forma automática e direta, já que desenvolvimento é o resultado de questões muito mais amplas e complexas. Este assunto, no entanto, é muito utilizado nos discursos para realizar a mudança da matriz de transportes do país.