Planejamento das ferrovias no país

Enquanto as concessões ferroviárias derivadas das empresas estatais RFFSA e Fepasa são dependentes ou possuem uma relação muito grande com uma lógica do passado, as novas concessões ferroviárias planejadas e em construção estão inseridas na lógica recente de modernização do Cerrado.

O Plano Nacional de Viação (PNV), instituído pela Lei 5.917, de 10 de setembro de 1973, relacionava em 2008 uma série de ferrovias que acrescenta à malha ferroviária nacional mais de 17 mil quilômetros de linhas.

RELAÇÃO DE FERROVIAS DO PLANO NACIONAL DE VIAÇÃO (2008)

Ferrovia (EF)Pontos de Passagem Unidades da FederaçãoExtensão (km)
151Belém – Barcarena – Açailândia – Porto Franco – Araguaína – Colinas do Tocantins – Guaraí – Porto Nacional – Alvorada – Porangatu – Uruaçu – Ouro Verde de Goiás – Anápolis – Rio Verde – São Simão – Estrela D’Oeste – Santa Fé do Sul – Aparecida do Taboado – Panorama PA – MA – TO – GO – MG – MS – SP2.760
170Santarém – Cuiabá PA – MT
222Rio de Janeiro – Nova Iguaçu – Barra Mansa – Resende – Cruzeiro – Guaratinguetá – São José dos Campos – Mogi das Cruzes – São Paulo – Campinas RJ – SP550
232Recife – Salgueiro – Trindade – Araripina – Eliseu Martins – Ribeiro Gonçalves – Balsas – Estreito PE – PI – MA1.770
267Panorama – Maracaju – Porto Murtinho SP – MS750
280Herval D’Oeste – Santa Cecília – Itajaí SC330
333Belo Horizonte – Divinópolis – Varginha – Poços de Caldas – Campinas – São Paulo – Sorocaba –
Itapetininga – Apiaí – Curitiba
 MG – SP – PR1.150
334Ilhéus – Brumado – Bom Jesus da Lapa – Barreiras – Luiz Eduardo Magalhães – Alvorada – Lucas do Rio Verde BA – TO – MT2.675
354Litoral Norte Fluminense – Muriaé – Ipatinga – Paracatu – Brasília – Uruaçu – Cocalinho – Ribeirão Cascalheira – Lucas do Rio Verde – Vilhena – Porto Velho – Rio Branco – Cruzeiro do Sul – Fronteira Brasil-Peru (Boqueirão da Esperança) RJ – MG – GO – DF – MT – RO – AC4.400
364Santos – São Paulo – Campinas – Araraquara – Rubinéia – Aparecida do Taboado – Rondonópolis – Cuiabá SP – MS – MT1.724
451São Francisco do Sul – Itajaí – Imbituba SC270
484Maracaju – Dourados – Mundo Novo – Guaíra – Toledo – Cascavel PR – MS500
485Porto União – Mafra – São Francisco do Sul SC460
Total  17.339

Os traçados e os pontos de passagem, origem e destino de grande parte destas ferrovias estão sendo planejadas e construídas para interligar regiões de produção agrícola aos portos exportadores, aproximar a região Centro-Oeste dos mercados internacionais, alterar os fluxos de cargas de exportação para outros portos do Brasil, principalmente do norte do país, e fortalecer os eixos, vetores ou corredores de exportação.

A maioria das ferrovias estabelecidas no PNV em 2008 é perpendicular ao litoral, configuração típica de países periféricos e dependentes, nos quais as redes de transportes são extravertidas e funcionais aos mercados internacionais. Algumas ferrovias alcançam portos fluviais, permitindo que os produtos sigam pelas hidrovias aos mercados externos. Estas ferrovias podem ser consideradas ferrovias do agronegócio, pois há uma relação muito estreita entre seus traçados e a produção de soja.

A ferrovia EF-151, entre Belém (PA) e Panorama (SP), é uma das mais importantes do país. A soja produzida na região sudoeste de Goiás, principalmente de municípios como Jataí, Rio Verde e Mineiros, poderá ser transportada aos portos de Santos (SP) ou Itaqui (MA) com mais facilidade e com custos mais competitivos devido à redução dos fretes.

Mato Grosso do Sul também possui uma grande produção de soja na região sul do estado, nos municípios de Maracaju, Dourados e Ponta Porã. A ferrovia EF-485, que ligará Maracaju (MS) à Cascavel (PR), foi definida para facilitar o escoamento da produção de soja dessa região aos portos de Paranaguá (PR) e Porto Murtinho (MS).

A ferrovia EF-170, entre Cuiabá (MT) e Santarém (PA), foi concebida para transportar soja e milho produzidos no norte de Mato Grosso para os portos do norte do país, principalmente nos terminais instalados no distrito de Miritituba, localizado no município de Itaituba (PA). O traçado desta ferrovia, também conhecida como Ferrogrão, é um pouco menor atualmente, interligando Sinop (MT) e Miritituba.

O planejamento das ferrovias realizado atualmente está limitado, principalmente, ao agronegócio exportador. Os traçados das ferrovias do PNV indicavam que não é prioridade interligar as regiões de maior atividade econômica do Brasil. Esta monofuncionalidade, verificada na concepção, projeto, construção e operação do sistema ferroviário nacional, leva à discussão sobre o real papel das ferrovias no pais. Como serviço público, deveria atender os interesses da coletividade, maximizando o número de usuários, a variedade de cargas e as regiões atendidas.

A Lei nº 5.917, de 10 de setembro de 1973, que tratava do PNV, foi revogada pela Lei das Ferrovias, de nº 14.273, de 23 de desembro de 2021.

Planejamento dos sistemas de transportes (2)

A partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o país passou a contar com uma série de instrumentos de planejamento que, teoricamente, possibilitariam a aplicação mais adequada e justa dos orçamentos públicos. Todos os investimentos previstos precisam fazer parte do Orçamento Geral da União, cujos dispêndios são orientados e realizados através da Lei do Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA).

O processo de definição dos orçamentos começa com o levantamento das necessidades de governos (federal, estadual e municipal), empresas e sociedade civil organizada. Em seguida, diversos estudos e planos são elaborados e utilizados para orientar os PPA, LDO e LOA, formando um conjunto de ações e obras a serem realizadas.

Apesar destes instrumentos, a execução dos planos e orçamentos previstos sempre foi um grande desafio, com dificuldades de todos os tipos. Diversos programas e aparatos regulatórios foram criados nas últimas décadas como tentativa de viabilizar a construção das infraestruturas.

Por não contar com recursos suficientes e para garantir que os projetos do PPA fossem efetivamente realizados, o Governo Federal criou a Parceria Público-Privada (PPP), instituída pela Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Em 2007, foi criado o Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT), que tem como objetivo principal retomar o processo de planejamento com base científica no país.

Em resposta à pressão de grande parte de setores empresariais que cobravam um crescimento econômico maior e semelhante ao de outros países ditos emergentes, foi criado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), através do Decreto nº 6.025, de 22 de janeiro de 2007.

O Governo Federal lançou, em 15 de agosto de 2012, o Programa de Investimento em Logística (PIL), tendo como objetivo ampliar os investimentos em infraestrutura rodoviária, ferroviária, hidroviária, portuária e aeroportuária.

Outra tentativa de viabilizar a construção de infraestrutura no país foi a criação do Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI), instituído pelo Decreto nº 8.428, de 2 de abril de 2015. Ele estabelece as diretrizes para que o Poder Público concedente possa solicitar à iniciativa privada projetos, estudos, levantamentos ou investigações necessárias para subsidiar o planejamento dos governos.

Em 2015, foi elaborado o Plano Nacional de Logística Integrada (2015-2035) pela estatal Empresa de Planejamento e Logística (EPL), nova designação da Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade (Etav). Já o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) foi criado, através da Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, para ampliar e fortalecer a relação entre o Estado e a iniciativa privada.

Nas últimas três décadas foram inúmeros os instrumentos criados na tentativa de viabilizar a construção de uma lista considerável de infraestruturas de transportes. A grande quantidade de planos, programas e projetos criados mostra a fragilidade do planejamento realizado, assim como a falta de credibilidade. Sempre que surge um obstáculo em sua efetivação, cria-se novas instituições e instrumentos.

Planejamento dos sistemas de transportes (1)

Um dos objetivos do planejamento dos sistemas de transportes é relacionar um conjunto de obras de infraestrutura que permita promover uma reorganização do território, normalmente considerado um obstáculo para a movimentação de cargas e pessoas. Nos últimos 150 anos, diversos planos foram realizados, refletindo as principais prioridades da sociedade brasileira em cada época.

Em 1852, quando a Estrada de Ferro D. Pedro II foi inaugurada, o engenheiro Christiano B. Ottoni já destacava a necessidade de realizar um plano geral que unificasse os interesses e os sistemas de transportes por ferrovias. A partir desta preocupação, entre 1862 e 1890, diversos planos não oficiais foram apresentados, tais como o Plano Morais (1869), essencialmente hidroviário, Plano Queiroz (1874), Plano Rebouças (1874) (Figura 20), Plano Bicalho (1881), Plano Bulhões (1882) e Plano de Viação Federal (Plano da Comissão de 1890), para citar os mais conhecidos e importantes. Estes planos previam a construção de vias de transportes em todas as regiões do país, no entanto nunca foram implementados.

Em 1934, foi instituído o primeiro plano geral de viação oficial, aprovado através do Decreto nº 24.497 de 29 de junho de 1934. Assim como os demais planos não oficiais apresentados, este também era essencialmente ferroviário, apesar de incluir importantes vias navegáveis como os rios São Francisco e Paraná.

É importante destacar que o Plano Nacional de Viação de 1934 já previa a ligação ferroviária entre Cuiabá (MT) e as capitais Goiânia (GO), Porto Velho (RO) e Campo Grande (MS) e a cidade de Santarém (PA), numa configuração muito próxima do projeto original da Ferronorte, atualmente Rumo Malha Norte, e a ligação entre Goiânia (GO) e Belém (PA), trecho compreendido atualmente pela Ferrovia Norte-Sul.

Na primeira metade do século XX, são apresentados os primeiros planos exclusivamente rodoviários, tais como Plano Catambri (1926/1927), Plano Schnoor (1927), Plano da Comissão das Estradas de Rodagem Federais (1927), Plano do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (1937) e Plano Rodoviário Nacional (1944). Estes planos rodoviários desconsideravam as vias ferroviárias e hidroviárias existentes.

O Plano Nacional de Viação de 1951, que não foi formalmente aprovado, já estabelecia que as rodovias e as aerovias assumiriam a função integradora do território em substituição às ferrovias. Verifica-se, a partir destes planos, uma priorização da expansão das rodovias e uma redução significativa da malha ferroviária no país.

A partir de 1990, os planos passam a privilegiar novamente a expansão das ferrovias em todo o território nacional. O Plano Nacional de Viação atualizado em 2008 apresentava a construção de mais de 17 mil quilômetros de linhas em todas as regiões do país.

Outro ponto importante a considerar sobre a história do planejamento dos transportes é que se espera dos investimentos propostos a solução de todos os problemas do país, dentre eles os sociais. Mas, geralmente, estes investimentos são pacotes que se apresentam isolados de outras realidades, ou seja, são ações particulares que atendem necessidades muito bem definidas, como o transporte de commodities agrícolas e minerais.

Plano Rebouças – 1874

Os interessados nas ferrovias brasileiras

Muitas discussões sobre as ferrovias são limitadas a determinados interesses e pontos de vista. Procura-se destacar pontos positivos e desconsiderar que um sistema de transporte é um dado social que se relaciona com tudo e com todos. Para uma melhor compreensão das realidades e fenômenos envolvidos, é importante que as análises sejam mais abrangentes, considerando a organização, o uso e a regulação do sistema ferroviário.

A organização considera os locais em que as linhas ferroviárias estão presentes e os pontos de conexão das malhas. O uso pode ser analisado pelos produtos e volumes transportados e pela qualidade dos serviços prestados sob a ótica dos usuários.

A regulação está relacionada à política dos agentes participantes do setor, à maneira como eles se relacionam, às leis, normas e regras comerciais utilizadas, além das políticas públicas de transportes e dos investimentos planejados e realizados.

A nova regulação do setor ferroviário verificada atualmente teve início em 1996 com o processo de privatização, cujos serviços de transportes foram definidos nos contratos de concessão. A proposta do processo de privatização era estimular a participação de várias empresas e investidores. Para possibilitar isto, nenhum investidor poderia ter mais de 20% de participação nas concessões ferroviárias. Mas a situação atual é muito diferente do estabelecido originalmente, já que o sistema ferroviário opera na forma de monopólio controlado por três empresas.

A participação de instituições estatais no setor ferroviário é uma das características do atual momento, apesar da privatização indicar à época a necessidade da saída do Estado do setor. O BNDES participa ativamente do controle acionário de empresas como Vale e CSN, operadoras de grande parte da malha ferroviária nacional. O BNDES também é o grande financiador, junto com outros bancos e fundos estatais, das principais obras ferroviárias.

A regulação do setor carece de índices que tratem da qualidade dos serviços de transportes. Há muitas reclamações de usuários, considerados dependentes de ferrovias, pois as concessionárias priorizam o transporte de suas próprias cargas. A quebra de contrato de transporte e o pagamento de multas são práticas muito comuns nas relações entre concessionárias e proprietários das cargas.

As regras comerciais das concessionárias também precisam ser discutidas e avaliadas, já que o frete utilizado nas ferrovias é baseado no frete rodoviário e não a partir de parâmetros inerentes à operação ferroviária.

Com relação ao planejamento do sistema ferroviário nacional, verifica-se que o uso mais amplo das ferrovias, que previa o transporte de cargas e passageiros, está sendo substituído por sistemas de transportes particulares e restritos a determinados usos e interesses.

A maneira como a regulação do setor é praticada atualmente é um dos grandes problemas para a expansão das ferrovias no país.