História das ferrovias no Brasil

Atribuir à indústria automobilística a responsabilidade pelo fim das ferrovias brasileiras na segunda metade do século XX é simplificar a história brasileira. A realidade sobre este assunto é muito mais complexa e precisa ser melhor analisada e apresentada.

Para entender as ferrovias brasileiras é preciso considerar, inicialmente, que os sistemas de transportes no mundo são uma demanda da sociedade, que muda com o tempo não apenas como resultado do uso de novas tecnologias, como ferrovias, aviões e automóveis, mas, também, pelas transformações econômicas, financeiras e geopolíticas verificadas no mundo.

É necessário considerar, também, que a história do sistema ferroviário nacional está relacionada a um movimento mundial mais abrangente, que também aconteceu em outros países. De uma forma geral, nos últimos 200 anos, as ferrovias no mundo passaram por três momentos distintos: desenvolvimento, decadência e retomada. Cada país atuou de forma muito particular nestes diferentes momentos, seguindo seus próprios caminhos e construindo histórias exclusivas.

Um terceiro ponto importante para entender a história das ferrovias está relacionado à forma como as mesmas foram inicialmente construídas e aos usos definidos durante sua implementação. As escolhas iniciais, portanto, foram fundamentais para a formação da história ferroviária de cada país.

Os EUA, por exemplo, construíram uma malha ferroviária visando o transporte de diversos produtos, principalmente aço e querosene de iluminação. Para atender o transporte destes produtos de consumo local, as ferrovias passaram a interligar as principais cidades entre si, formando redes de transportes do tipo solar, christalleriana ou de múltiplos circuitos.

Enquanto isso, no Brasil, as ferrovias foram construídas para atender a exportação do café, que foi o produto dominante em todo o período de desenvolvimento das ferrovias. Até a década de 1930, aproximadamente, a sociedade brasileira era caracterizada como agroexportadora e as infraestruturas de transporte foram construídas para seguir esta lógica. A malha ferroviária brasileira foi estabelecida, em grande parte, perpendicular ao litoral, extravertida, ligando regiões produtoras de produtos primários aos portos exportadores, formando redes do tipo dendrítica.

Rede dendrítica (CORRÊA, 2001)

As três considerações apresentadas são fundamentais para explicar como as ferrovias brasileiras foram organizadas e utilizadas nos períodos de desenvolvimento, decadência e retomada.


CORRÊA, R. L. Trajetórias Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001.

Início das ferrovias no mundo

É difícil afirmar com precisão quem inventou a ferrovia, pois as principais partes que compõem este sistema de transporte foram criadas em épocas diferentes. A utilização de guias ou trilhos para facilitar a movimentação de cargas é conhecida há milhares de anos. As unidades motrizes a vapor, por outro lado, foram inventadas mais recentemente, no início da Revolução Industrial. Quando estes dois elementos se encontraram, as ferrovias que conhecemos atualmente começaram, efetivamente, a se desenvolver pelo mundo.

Civilizações antigas já sabiam que rodas se movem mais facilmente em superfícies lisas e sem declividade, que é um dos princípios básicos que garantem o funcionamento das ferrovias. Gregos e Romanos já utilizavam sulcos em caminhos de pedras para facilitar a passagem de veículos (LOXTON, 1972). Um dos mais conhecidos é o Diolkos, caminho pavimentado por pedras com 6,3 km de extensão, aproximadamente, construído no ano 700 a. c. Foi utilizado por mais de 600 anos para cruzar o Istmo de Corinto, na Grécia, permitindo que embarcações pudessem passar por terra do Golfo de Corinto ao Golfo Sarónico. Foi um atalho criado para evitar a circunavegação da península Peloponnese. Atualmente, neste mesmo lugar, há um canal navegável que desempenha a mesma função do Diolkos.

Também era de conhecimento geral que a colocação de tábuas de madeira nos sulcos criados nas estradas pelas rodas das carruagens reduzia os esforços dos cavalos (ibdem). A resistência ao movimento ficava muito menor. O uso de trilhos de madeira partiu desta constatação. Entre os anos 1600 e 1800, há diversos casos de sistemas de movimentação com trilhos de madeira voltados para o transporte de carvão nas minas inglesas e em outros países da Europa.

Até final do século XVIII, as ferrovias eram tracionadas pela força humana, cavalo ou cabos ligados a um motor estacionário. Com a invenção dos motores a vapor na segunda metade do século XVIII e o seu desenvolvimento realizado, principalmente, pelo britânico James Watt, a tração animal começou a ser gradativamente substituída por unidades a vapor independentes e de grande capacidade de força.

Outras contribuições surgiram em seguida para que as ferrovias se desenvolvessem. O inglês Richard Trevithick criou, em 1807, a primeira locomotiva a vapor que operou numa ferrovia. Com o objetivo de atrair o interesse do público, ele montou uma pista circular para que os londrinos pudessem experimentar o passeio em carros abertos tracionados por uma locomotiva a vapor, conhecida como Catch Me Who Can, algo como Pegue-me quem puder (Figura 1). Ingressos eram cobrados dos frequentadores que se interessassem em participar deste momento diferente e único.

Pista curcular montada por Richard Trevithick em 1807

Em 1800, a patente dos motores a vapor de propriedade da empresa Boulton & Watt expirou, o que motivou outros interessados a desenvolver alternativas mais eficientes e potentes. Nesse início do século XIX, verificou-se, portanto, uma grande competição para ver quem desenvolvia a melhor locomotiva a vapor. Eventos públicos com grande presença de interessados eram organizados para que engenheiros e inventores pudessem apresentar suas novidades. Um dos nomes mais influentes à época, o engenheiro inglês Robert Stephenson, apresentou sua Rocket (foguete) num evento em 1829, sagrando-se vencedor em todos os quesitos (ibdem). A partir da Stockton & Darlington Railway, inaugurada em 1825 e considerada a primeira ferrovia pública de passageiros, o desenvolvimento das ferrovias no mundo não parou mais.

Brasil fora dos trilhos #1

Nunca se investiu tanto em ferrovias no mundo como nas últimas décadas, tanto na ampliação de linhas como na reforma de sistemas mais antigos.

O maior exemplo desse investimento vem da China, país que construiu em pouco tempo uma rede de trens de alta velocidade com mais de 40 mil quilômetros de linhas.

Também chama muito atenção as notícias positivas que chegam do Japão, que é um dos países que mais investe em tecnologia ferroviária. Em 2024, será comemorado o aniversário de 60 anos do Trem Bala, ou Shinkansen.

Enquanto isso, no Brasil, os investimentos em ferrovias ainda não estão acontecendo como poderia se esperar. São muitas promessas e projetos e poucos serviços foram efetivados e colocados em operação.

A edição de julho e agosto de 2023 da Revista Ferrovia destacou em seu editorial mais uma preocupação que confirma a distância do nosso país com o que o mundo está praticando.

“O fato de o governo federal anunciar no novo PAC investimentos públicos de R$73 bilhões em rodovias e menos de 10% disso (R$6 bilhões) em ferrovias sacramenta o quanto a sociedade brasileira está distante de perceber a importância em aumentar a participação das ferrovias na matriz de transportes nacional.”

A prioridade pela opção rodoviária evidencia ainda mais a condição do nosso país como o mais atrasado do mundo em termos de uso de ferrovias. Paises mais organizados socialmente estão há muito tempo investindo em ferrovias, buscando por sistemas de transportes mais baratos e menos poluentes.

Os artigos que serão apresentados a partir de agora no Ferrovia e Sociedade são uma tentativa de explicar para a sociedade brasileira porque o Brasil ainda não adotou o trem como o principal sistema de transporte de cargas e pessoas.