Planejamento das ferrovias no país

Enquanto as concessões ferroviárias derivadas das empresas estatais RFFSA e Fepasa são dependentes ou possuem uma relação muito grande com uma lógica do passado, as novas concessões ferroviárias planejadas e em construção estão inseridas na lógica recente de modernização do Cerrado.

O Plano Nacional de Viação (PNV), instituído pela Lei 5.917, de 10 de setembro de 1973, relacionava em 2008 uma série de ferrovias que acrescenta à malha ferroviária nacional mais de 17 mil quilômetros de linhas.

RELAÇÃO DE FERROVIAS DO PLANO NACIONAL DE VIAÇÃO (2008)

Ferrovia (EF)Pontos de Passagem Unidades da FederaçãoExtensão (km)
151Belém – Barcarena – Açailândia – Porto Franco – Araguaína – Colinas do Tocantins – Guaraí – Porto Nacional – Alvorada – Porangatu – Uruaçu – Ouro Verde de Goiás – Anápolis – Rio Verde – São Simão – Estrela D’Oeste – Santa Fé do Sul – Aparecida do Taboado – Panorama PA – MA – TO – GO – MG – MS – SP2.760
170Santarém – Cuiabá PA – MT
222Rio de Janeiro – Nova Iguaçu – Barra Mansa – Resende – Cruzeiro – Guaratinguetá – São José dos Campos – Mogi das Cruzes – São Paulo – Campinas RJ – SP550
232Recife – Salgueiro – Trindade – Araripina – Eliseu Martins – Ribeiro Gonçalves – Balsas – Estreito PE – PI – MA1.770
267Panorama – Maracaju – Porto Murtinho SP – MS750
280Herval D’Oeste – Santa Cecília – Itajaí SC330
333Belo Horizonte – Divinópolis – Varginha – Poços de Caldas – Campinas – São Paulo – Sorocaba –
Itapetininga – Apiaí – Curitiba
 MG – SP – PR1.150
334Ilhéus – Brumado – Bom Jesus da Lapa – Barreiras – Luiz Eduardo Magalhães – Alvorada – Lucas do Rio Verde BA – TO – MT2.675
354Litoral Norte Fluminense – Muriaé – Ipatinga – Paracatu – Brasília – Uruaçu – Cocalinho – Ribeirão Cascalheira – Lucas do Rio Verde – Vilhena – Porto Velho – Rio Branco – Cruzeiro do Sul – Fronteira Brasil-Peru (Boqueirão da Esperança) RJ – MG – GO – DF – MT – RO – AC4.400
364Santos – São Paulo – Campinas – Araraquara – Rubinéia – Aparecida do Taboado – Rondonópolis – Cuiabá SP – MS – MT1.724
451São Francisco do Sul – Itajaí – Imbituba SC270
484Maracaju – Dourados – Mundo Novo – Guaíra – Toledo – Cascavel PR – MS500
485Porto União – Mafra – São Francisco do Sul SC460
Total  17.339

Os traçados e os pontos de passagem, origem e destino de grande parte destas ferrovias estão sendo planejadas e construídas para interligar regiões de produção agrícola aos portos exportadores, aproximar a região Centro-Oeste dos mercados internacionais, alterar os fluxos de cargas de exportação para outros portos do Brasil, principalmente do norte do país, e fortalecer os eixos, vetores ou corredores de exportação.

A maioria das ferrovias estabelecidas no PNV em 2008 é perpendicular ao litoral, configuração típica de países periféricos e dependentes, nos quais as redes de transportes são extravertidas e funcionais aos mercados internacionais. Algumas ferrovias alcançam portos fluviais, permitindo que os produtos sigam pelas hidrovias aos mercados externos. Estas ferrovias podem ser consideradas ferrovias do agronegócio, pois há uma relação muito estreita entre seus traçados e a produção de soja.

A ferrovia EF-151, entre Belém (PA) e Panorama (SP), é uma das mais importantes do país. A soja produzida na região sudoeste de Goiás, principalmente de municípios como Jataí, Rio Verde e Mineiros, poderá ser transportada aos portos de Santos (SP) ou Itaqui (MA) com mais facilidade e com custos mais competitivos devido à redução dos fretes.

Mato Grosso do Sul também possui uma grande produção de soja na região sul do estado, nos municípios de Maracaju, Dourados e Ponta Porã. A ferrovia EF-485, que ligará Maracaju (MS) à Cascavel (PR), foi definida para facilitar o escoamento da produção de soja dessa região aos portos de Paranaguá (PR) e Porto Murtinho (MS).

A ferrovia EF-170, entre Cuiabá (MT) e Santarém (PA), foi concebida para transportar soja e milho produzidos no norte de Mato Grosso para os portos do norte do país, principalmente nos terminais instalados no distrito de Miritituba, localizado no município de Itaituba (PA). O traçado desta ferrovia, também conhecida como Ferrogrão, é um pouco menor atualmente, interligando Sinop (MT) e Miritituba.

O planejamento das ferrovias realizado atualmente está limitado, principalmente, ao agronegócio exportador. Os traçados das ferrovias do PNV indicavam que não é prioridade interligar as regiões de maior atividade econômica do Brasil. Esta monofuncionalidade, verificada na concepção, projeto, construção e operação do sistema ferroviário nacional, leva à discussão sobre o real papel das ferrovias no pais. Como serviço público, deveria atender os interesses da coletividade, maximizando o número de usuários, a variedade de cargas e as regiões atendidas.

A Lei nº 5.917, de 10 de setembro de 1973, que tratava do PNV, foi revogada pela Lei das Ferrovias, de nº 14.273, de 23 de desembro de 2021.

Planejamento dos sistemas de transportes (2)

A partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o país passou a contar com uma série de instrumentos de planejamento que, teoricamente, possibilitariam a aplicação mais adequada e justa dos orçamentos públicos. Todos os investimentos previstos precisam fazer parte do Orçamento Geral da União, cujos dispêndios são orientados e realizados através da Lei do Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA).

O processo de definição dos orçamentos começa com o levantamento das necessidades de governos (federal, estadual e municipal), empresas e sociedade civil organizada. Em seguida, diversos estudos e planos são elaborados e utilizados para orientar os PPA, LDO e LOA, formando um conjunto de ações e obras a serem realizadas.

Apesar destes instrumentos, a execução dos planos e orçamentos previstos sempre foi um grande desafio, com dificuldades de todos os tipos. Diversos programas e aparatos regulatórios foram criados nas últimas décadas como tentativa de viabilizar a construção das infraestruturas.

Por não contar com recursos suficientes e para garantir que os projetos do PPA fossem efetivamente realizados, o Governo Federal criou a Parceria Público-Privada (PPP), instituída pela Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Em 2007, foi criado o Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT), que tem como objetivo principal retomar o processo de planejamento com base científica no país.

Em resposta à pressão de grande parte de setores empresariais que cobravam um crescimento econômico maior e semelhante ao de outros países ditos emergentes, foi criado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), através do Decreto nº 6.025, de 22 de janeiro de 2007.

O Governo Federal lançou, em 15 de agosto de 2012, o Programa de Investimento em Logística (PIL), tendo como objetivo ampliar os investimentos em infraestrutura rodoviária, ferroviária, hidroviária, portuária e aeroportuária.

Outra tentativa de viabilizar a construção de infraestrutura no país foi a criação do Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI), instituído pelo Decreto nº 8.428, de 2 de abril de 2015. Ele estabelece as diretrizes para que o Poder Público concedente possa solicitar à iniciativa privada projetos, estudos, levantamentos ou investigações necessárias para subsidiar o planejamento dos governos.

Em 2015, foi elaborado o Plano Nacional de Logística Integrada (2015-2035) pela estatal Empresa de Planejamento e Logística (EPL), nova designação da Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade (Etav). Já o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) foi criado, através da Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, para ampliar e fortalecer a relação entre o Estado e a iniciativa privada.

Nas últimas três décadas foram inúmeros os instrumentos criados na tentativa de viabilizar a construção de uma lista considerável de infraestruturas de transportes. A grande quantidade de planos, programas e projetos criados mostra a fragilidade do planejamento realizado, assim como a falta de credibilidade. Sempre que surge um obstáculo em sua efetivação, cria-se novas instituições e instrumentos.

Planejamento dos sistemas de transportes (1)

Um dos objetivos do planejamento dos sistemas de transportes é relacionar um conjunto de obras de infraestrutura que permita promover uma reorganização do território, normalmente considerado um obstáculo para a movimentação de cargas e pessoas. Nos últimos 150 anos, diversos planos foram realizados, refletindo as principais prioridades da sociedade brasileira em cada época.

Em 1852, quando a Estrada de Ferro D. Pedro II foi inaugurada, o engenheiro Christiano B. Ottoni já destacava a necessidade de realizar um plano geral que unificasse os interesses e os sistemas de transportes por ferrovias. A partir desta preocupação, entre 1862 e 1890, diversos planos não oficiais foram apresentados, tais como o Plano Morais (1869), essencialmente hidroviário, Plano Queiroz (1874), Plano Rebouças (1874) (Figura 20), Plano Bicalho (1881), Plano Bulhões (1882) e Plano de Viação Federal (Plano da Comissão de 1890), para citar os mais conhecidos e importantes. Estes planos previam a construção de vias de transportes em todas as regiões do país, no entanto nunca foram implementados.

Em 1934, foi instituído o primeiro plano geral de viação oficial, aprovado através do Decreto nº 24.497 de 29 de junho de 1934. Assim como os demais planos não oficiais apresentados, este também era essencialmente ferroviário, apesar de incluir importantes vias navegáveis como os rios São Francisco e Paraná.

É importante destacar que o Plano Nacional de Viação de 1934 já previa a ligação ferroviária entre Cuiabá (MT) e as capitais Goiânia (GO), Porto Velho (RO) e Campo Grande (MS) e a cidade de Santarém (PA), numa configuração muito próxima do projeto original da Ferronorte, atualmente Rumo Malha Norte, e a ligação entre Goiânia (GO) e Belém (PA), trecho compreendido atualmente pela Ferrovia Norte-Sul.

Na primeira metade do século XX, são apresentados os primeiros planos exclusivamente rodoviários, tais como Plano Catambri (1926/1927), Plano Schnoor (1927), Plano da Comissão das Estradas de Rodagem Federais (1927), Plano do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (1937) e Plano Rodoviário Nacional (1944). Estes planos rodoviários desconsideravam as vias ferroviárias e hidroviárias existentes.

O Plano Nacional de Viação de 1951, que não foi formalmente aprovado, já estabelecia que as rodovias e as aerovias assumiriam a função integradora do território em substituição às ferrovias. Verifica-se, a partir destes planos, uma priorização da expansão das rodovias e uma redução significativa da malha ferroviária no país.

A partir de 1990, os planos passam a privilegiar novamente a expansão das ferrovias em todo o território nacional. O Plano Nacional de Viação atualizado em 2008 apresentava a construção de mais de 17 mil quilômetros de linhas em todas as regiões do país.

Outro ponto importante a considerar sobre a história do planejamento dos transportes é que se espera dos investimentos propostos a solução de todos os problemas do país, dentre eles os sociais. Mas, geralmente, estes investimentos são pacotes que se apresentam isolados de outras realidades, ou seja, são ações particulares que atendem necessidades muito bem definidas, como o transporte de commodities agrícolas e minerais.

Plano Rebouças – 1874

Os interessados nas ferrovias brasileiras

Muitas discussões sobre as ferrovias são limitadas a determinados interesses e pontos de vista. Procura-se destacar pontos positivos e desconsiderar que um sistema de transporte é um dado social que se relaciona com tudo e com todos. Para uma melhor compreensão das realidades e fenômenos envolvidos, é importante que as análises sejam mais abrangentes, considerando a organização, o uso e a regulação do sistema ferroviário.

A organização considera os locais em que as linhas ferroviárias estão presentes e os pontos de conexão das malhas. O uso pode ser analisado pelos produtos e volumes transportados e pela qualidade dos serviços prestados sob a ótica dos usuários.

A regulação está relacionada à política dos agentes participantes do setor, à maneira como eles se relacionam, às leis, normas e regras comerciais utilizadas, além das políticas públicas de transportes e dos investimentos planejados e realizados.

A nova regulação do setor ferroviário verificada atualmente teve início em 1996 com o processo de privatização, cujos serviços de transportes foram definidos nos contratos de concessão. A proposta do processo de privatização era estimular a participação de várias empresas e investidores. Para possibilitar isto, nenhum investidor poderia ter mais de 20% de participação nas concessões ferroviárias. Mas a situação atual é muito diferente do estabelecido originalmente, já que o sistema ferroviário opera na forma de monopólio controlado por três empresas.

A participação de instituições estatais no setor ferroviário é uma das características do atual momento, apesar da privatização indicar à época a necessidade da saída do Estado do setor. O BNDES participa ativamente do controle acionário de empresas como Vale e CSN, operadoras de grande parte da malha ferroviária nacional. O BNDES também é o grande financiador, junto com outros bancos e fundos estatais, das principais obras ferroviárias.

A regulação do setor carece de índices que tratem da qualidade dos serviços de transportes. Há muitas reclamações de usuários, considerados dependentes de ferrovias, pois as concessionárias priorizam o transporte de suas próprias cargas. A quebra de contrato de transporte e o pagamento de multas são práticas muito comuns nas relações entre concessionárias e proprietários das cargas.

As regras comerciais das concessionárias também precisam ser discutidas e avaliadas, já que o frete utilizado nas ferrovias é baseado no frete rodoviário e não a partir de parâmetros inerentes à operação ferroviária.

Com relação ao planejamento do sistema ferroviário nacional, verifica-se que o uso mais amplo das ferrovias, que previa o transporte de cargas e passageiros, está sendo substituído por sistemas de transportes particulares e restritos a determinados usos e interesses.

A maneira como a regulação do setor é praticada atualmente é um dos grandes problemas para a expansão das ferrovias no país.

Veículos Leves sobre Trilhos

Os bondes, na segunda metade do século XIX, desempenharam importante papel no transporte urbano de passageiros nas principais cidades do mundo. Eram eficientes, rápidos, confortáveis e ambientalmente sustentáveis. Da mesma forma, as principais cidades do Brasil possuíam extensas e complexas redes de bondes, interligando pontos importantes e bairros.

Na primeira metade do século XX, as prioridades das cidades se modificaram e, gradativamente, os sistemas de transportes públicos de passageiros sobre trilhos começaram a ser substituídos por outros que utilizavam pneus. Os serviços dos bondes foram praticamente encerrados no país na década de 1960. Em Piracicaba, os bondes foram utilizados por aproximadamente 50 anos. A partir do centro da cidade, atendiam a Estação da Paulista, Esalq e bairro Vila Rezende. Também encerraram as atividades na década de 1960.

A história deste importante sistema de transporte urbano foi praticamente apagada pelo tempo. Os trilhos foram vendidos por peso ou enterrados pelo asfalto e o material rodante virou sucata. Poucos carros que serviram aos serviços de bondes no país sobreviveram. Há, no entanto, dois sistemas importantes que ainda remetem às lembranças do passado. O Bonde de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, é o único que transporta regularmente passageiros utilizando aqueles carros tradicionais com laterais abertas e estribos. Em 2017, transportou, aproximadamente, 250 mil passageiros. Ainda está em reformas, após grave acidente verificado em 2011. O sistema de bondes na cidade de Santos também é muito conhecido, sendo utilizado, no entanto, para fins turísticos.

A tentativa de reativar estes sistemas de trens urbanos é recente no país. Atualmente, são conhecidos como Veículo Leve sobre Trilhos ou, simplesmente, VLT. O mais conhecido de todos é o VLT Carioca (ver figura), que, em 2017, transportou 11,5 milhões de pessoas. Contando com 12,4 km de extensão, seus trilhos interligam vários pontos da região central do Rio de Janeiro, compartilhando os mesmos espaços com pedestres e demais veículos automotores. Está interligado com outras opções de transporte público de passageiros, como o terminal das barcas, na Praça XV, rodoviária, Aeroporto Santos Dumont, metrô e trem. Os trens são movidos a eletricidade, com sistema de alimentação pelo solo.

VLT CARIOCA – RIO DE JANEIRO

Há três outros sistemas VLT em funcionamento no país. O VLT Cariri, contando com 13,6 km de extensão, transportou em 2017 aproximadamente 350 mil passageiros. Opera em sistema segregado, sem competir com outros veículos em grande parte do trajeto. Utiliza a malha de uma ferrovia já existente, interligando os municípios de Crato e Juazeiro do Norte, no Ceará. Os trens são movidos à diesel.

O VLT Baixada Santista é o sistema que mais transporta passageiros no país, totalizando 5,8 milhões em 2017. Com 11,5 km de extensão, interliga São Vicente e Santos através de um sistema segregado, com interferências apenas em algumas passagens em nível. As composições são movidas a energia elétrica e o traçado foi construído num trecho desativado da antiga Fepasa. O VLT Sobral transportou 360 mil passageiros em 2017, utilizando 13,6 km de linhas na cidade de Sobral, Ceará. Também opera em grande parte do trecho de forma segregado. A frota é movida a diesel e utiliza trecho de uma antiga ferrovia.

A ampliação dos sistemas VLT no país ainda é uma incógnita. Os projetos e obras caminham lentamente, apesar dos grandes problemas de mobilidade existentes nas médias e grandes cidades brasileiras.

Desativação de trechos ferroviários

Até o início do século XX, nos Estados Unidos da América, empresas ferroviárias costumavam construir parques de diversão no final das linhas de trem para maximizar o uso dos ativos ferroviários. Durante a semana, os trabalhadores utilizavam os trens e garantiam receita para as ferrovias. Nos finais de semana, no entanto, eram os parques que movimentavam os trens. Esta era uma prática muito utilizada para solucionar problemas de baixa demanda nas ferrovias.

No Brasil, após as privatizações das malhas da RFFSA realizadas entre 1996 e 1998, verifica-se um processo lento e constante de abandono e devolução de trechos menos interessantes para as empresas concessionárias. De um total de 29 mil km de linhas transferidas para a iniciativa privada, atualmente apenas um terço é efetivamente utilizado.

Após 28 anos do processo de privatização, o sistema ferroviário brasileiro é operado e controlado por três grandes grupos, que transportam, em grande parte, seus próprios produtos. Os serviços oferecidos por estas empresas privilegiam o transporte de cargas de grande volume e baixo valor agregado em direção aos portos e mercados internacionais. Trechos ferroviários não inseridos nesta lógica possuem tráfego praticamente nulo e estão sempre sujeitos à desativação e devolução ao poder concedente, ou seja, para a União.

O uso cada vez mais racional do sistema ferroviário nacional está fortalecendo os corredores de exportação de commodities agrícolas e minerais. Produtos que não se enquadram nestes corredores não são considerados prioritários pelos serviços de transporte ferroviário e, provavelmente, terão que ser transportados por caminhões.

A desativação ou erradicação de trechos ferroviários está acontecendo com muita facilidade e sem grandes questionamentos e discussões. Atualmente, segundo a ANTT, há 4.385,5 km de trechos sem tráfego e 1.759,8 km de trechos desativados, totalizando 6.145,3 km (ver figura). Para que algumas regiões do país não sejam prejudicadas por estas práticas, chegou a tramitar em Brasília o Projeto de Lei 4932/2016, atualmente arquivado. O objetivo era que a desativação de trechos ferroviários de baixa utilização deveria ser debatida e aprovada pelo Congresso Nacional. Era uma tentativa de aumentar o controle social sobre diversas decisões relativas às ferrovias brasileiras.

ALGUMAS FERROVIAS DESATIVADAS

Mas tudo isso poderia ser diferente. Os contratos de concessão das ferrovias concessionadas a partir de 1996 têm como objeto a “concessão para a exploração e desenvolvimento do serviço de transporte ferroviário de carga”. As ferrovias Estrada de Ferro Carajás e Estrada de Ferrovia Vitória-Minas, ambas controladas pela Vale, também contemplam em seu objeto o transporte de passageiros. Tudo indica que não ficou muito claro nos contratos o significado do objetivo “desenvolvimento”.

Para àqueles que pensam a ferrovia como uma solução logística para o país, desenvolvimento está relacionado, provavelmente, à ampliação dos serviços, da malha ferroviária, da variedade de produtos transportados, do número de clientes e dos setores econômicos atendidos. Porém, para os operadores do sistema, desenvolvimento está relacionado ao aumento dos fluxos de seus próprios produtos e setores econômicos em que estão inseridos.

O futuro do sistema ferroviário nacional depende de uma rediscussão dos contratos e dos demais aparatos regulatórios. O encolhimento da malha ferroviária é a maior demonstração de que algo não está funcionando como estabelecido inicialmente nos contratos de concessão.

Evolução do transporte ferroviário de cargas

Nos últimos anos, a quantidade total de carga transportada pelas ferrovias brasileiras teve um aumento de 50%. De uma forma geral, este resultado parece positivo, já que o aumento da produção ferroviária é uma das exigências ou um dos compromissos estabelecidos nos contratos de concessão.

No entanto, esta realidade se deve, principalmente, ao minério de ferro (58% maior no período) e produtos do agronegócio (75% maior) (REVISTA FERROVIÁRIA, 2017). Outros produtos, como carvão, cimento, granéis minerais, produtos siderúrgicos e combustíveis perderam participação nas ferrovias no mesmo período. A redução nos volumes transportados destes produtos mais elaborados confirma que as prioridades do sistema ferroviário nacional é transportar commodities agrícolas e minerais (ver tabela).

Em 2018, 77% da carga transportada pelas ferrovias foi de minério de ferro e 14% de produtos do agronegócio, tais como soja, milho, açúcar, adubos e fertilizantes. A Estrada de Ferro Carajás, entre Parauapebas (PA) e São Luís (MA), transportou 33% do total transportado pelas ferrovias brasileiras em 2017. Enquanto isso, MRS Logística e Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM) movimentaram, respectivamente, 25% e 24% do total. 

A concentração dos serviços de transportes em poucas ferrovias é uma das características do sistema ferroviário da atualidade. O sistema está se tornando cada vez mais monofuncional e especializado no transporte de produtos aos mercados internacionais. Ferrovias que não participam do transporte de minério ou soja perdem espaço no sistema e interesse dos operadores e investidores.

Nos relatórios anuais apresentados, a velocidade média dos trens chama muito a atenção. Além de serem muito baixas, quando comparada com a da opção rodoviária, nos últimos 10 anos a velocidade dos trens sofreu uma redução. Das 13 concessionárias, apenas duas tiveram um aumento na velocidade comercial. A EFVM aumentou a velocidade comercial, entre 2006 e 2017, de 21,52 km/h para 27,39 km/h (ANTT, 2019). Verifica-se, também, que nas demais concessões as velocidades são bem menores.

Apesar da situação apresentada acima, não há propostas ou indícios de que algo de novo esteja sendo pensado para criar um verdadeiro sistema ferroviário nacional. As ferrovias atuais estão privilegiando os corredores de exportação, reduzindo suas malhas; os serviços de transportes estão ficando restritos ao minério e grãos para exportação; e as novas ferrovias estão sendo construídas para atender o setor mineral e o agronegócio. A evolução do transporte ferroviário exige um pensamento mais abrangente sobre as reais contribuições desta importante opção de transportes para o país.

Ferrovia Transnordestina

Construir ferrovias não é uma tarefa fácil, ainda mais no Brasil. As obras da Ferrovia Transnordestina, localizadas na região nordeste do país, se arrastam por mais de uma década. Está consumindo bilhões de reais dos cofres públicos, com data indefinida para a sua conclusão.

A ferrovia está sendo construída para ligar Eliseu Martins, no Piauí, aos portos de Suape e Pecém, localizados em Pernambuco e Ceará, respectivamente. Com 1.753 km de extensão, tem como objetivo principal transportar commodities agrícolas e minerais. É considerada, portanto, uma ferrovia exportadora.

A história da Ferrovia Transnordestina ajuda a explicar um pouco as grandes dificuldades enfrentadas atualmente. Tudo começou em 1997, quando foi assinado o contrato de concessão da Malha Nordeste, de bitola métrica, pelo período de 30 anos, entre a União e a Companhia Ferroviária do Nordeste S.A. (CFN), concessionária que tinha como acionistas a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e Taquari Participações S. A.

A empresa ferroviária, em conjunto com diversas instituições públicas, firmou acordo em 2005 para a construção da Ferrovia Nova Transnordestina. No ano seguinte, as obras desta nova ferrovia de bitola larga (1,6 m) se inicia. A razão social da CFN foi alterada, em 2008, para Transnordestina Logística S. A. (TLSA).

Em 2013, a empresa ferroviária TLSA foi dividida em duas novas empresas. A Ferrovia Transnordestina Logística (FTL), que passou a cuidar da operação da malha antiga de bitola métrica, e a própria TLSA, que ficou responsável pela construção da nova ferrovia de bitola larga.

A proposta original previa que a ferrovia seria construída e operada por empresas privadas. Mas não foi exatamente isso que aconteceu. Atualmente, a Transnordestina Logística S.A. possui mais acionistas estatais do que privados. São eles: CSN (48,04%), Infra (36,47%), BNDES (7,72%), BNDESPAR (6,13%) e FINAME (1,64%) (Fonte: Abifer). A escolha de sócios e investidores estatais parece ter sido a única opção para resolver os problemas políticos, econômicos e ambientais inerentes à obra.

A construção da ferrovia ainda apresenta grandes desafios. O marco zero das obras está localizado no município de Salgueiro, no sertão pernambucano. A oeste deste ponto está Eliseu Martins, município próximo da fronteira agrícola produtora de soja e da Ferrovia Norte-Sul. Ao norte segue o trecho ferroviário em direção ao porto de Pecém e a leste está o acesso ao porto de Suape.

Neste ponto central da ferrovia estão localizadas a fábrica de dormentes, as reservas de brita para o lastro da ferrovia e a operação de solda de trilhos. A logística da construção envolve a construção da infraestrutura (cortes, aterros e pontes) e assentamento de trilhos. A falta de água em toda a região da ferrovia prejudicou os trabalhos de terraplanagem para a formação do leito dos trilhos. A situação poderia ser diferente, já que, ao lado da fábrica de dormentes, existia um dos ramais inacabados da transposição do Rio São Francisco. A Odebrecht Infraestrutura, responsável pela fábrica de dormentes, rescindiu o contrato com a TLSA em 2013, aumentando ainda mais as incertezas quanto ao futuro da ferrovia.

Para agravar ainda mais a situação, não está muito claro, ainda, a oferta real de carga para justificar a construção da ferrovia. Há muitas críticas quanto à sua viabilidade. Por enquanto, a maior contribuição da Ferrovia Transnordestina é fazer parte da lista de obras ferroviárias inacabadas no país que não conseguem sair totalmente do papel.

Ferrovias de alto desempenho

O sistema ferroviário nacional é formado por 14 concessões ferroviárias, cada uma com suas especificidades em termos de infraestruturas, cargas transportadas e obrigações contratuais. Uma das principais características deste sistema é que as operações estão concentradas em apenas três empresas, consideradas ferrovias de alto desempenho. Em 2017, MRS (MRS Logística), Estrada de Ferro Carajás (EFC) e Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM), juntas, transportaram 82% de toda a carga ferroviária no país utilizando apenas 12% da malha concessionada existente (figura).

Relação das ferrovias de alto desempenho com os portos

Controlada pela empresa mineradora Vale, a EFC transporta minério da Província Mineral dos Carajás ao Terminal Marítimo da Ponta da Madeira, em São Luís (MA). Contando com 892 km de extensão em bitola larga (1,6 metro), a ferrovia entrou em operação em 1985. Atualmente, a sua duplicação está praticamente finalizada. Além do minério de ferro, a EFC também transporta passageiros, entre São Luís (MA) e Parauapebas (PA), e commodities agrícolas, a partir da FNS – Ferrovia Norte-Sul em Açailândia (MA).

A EFC transportou, em 2017, 175 milhões de toneladas de carga, sendo 98% de minério de ferro. Esta ferrovia pode ser classificada como extravertida e unidirecional, pois a movimentação de produtos em direção ao porto é muito superior quando comparada à carga no sentido oposto. É uma ferrovia majoritariamente monofuncional, pois sua operação privilegia o transporte de minério em detrimento de outros produtos.

Apesar do sucesso das operações ferroviárias da EFC anunciado amplamente nos meios de comunicação, os municípios adjacentes à linha ferroviária nos estados do Maranhão e Pará possuem altos índices de pobreza e baixos índices de desenvolvimento humano (IDH) quando comparados aos de outras regiões do país.

Criada em 1904, a EFVM, contando com 905 km de extensão em bitola métrica e linha duplicada, é utilizada pela mineradora Vale para o transporte de minério de ferro do Quadrilátero Ferrífero, localizado nas proximidades de Belo Horizonte (MG), aos portos em Vitória (ES). Ela também realizada o transporte de passageiros em viagens diárias.

O volume total transportado em 2017 pela ferrovia foi de aproximadamente 128 milhões de toneladas, sendo que 91% correspondeu ao minério de ferro. Por atender prioritariamente o transporte de produtos para exportação, essa ferrovia pode ser classificada, também, como extravertida e unidirecional, pois os vagões voltam praticamente vazios no sentido porto-interior.

A MRS, com 1.643 km de extensão em bitola larga, interliga Belo Horizonte com São Paulo e Rio de Janeiro e seus respectivos portos exportadores, Santos, Guaíba, Itaguaí e Rio de Janeiro. Controlada pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e MBR (Vale), transportou 131 milhões de toneladas em 2017, sendo 88% do produto minério de ferro.

As características apresentadas acima indicam que as ferrovias são altamente vulneráveis, pois dependem de um único produto. Qualquer oscilação negativa na demanda mundial pelo minério de ferro, as ferrovias podem perder o sentido. Para a organização de um sistema ferroviário nacional sustentável, é fundamental ampliar os tipos de produtos transportados e aumentar o número de clientes e regiões atendidas.

Ferrovias do agronegócio

As ferrovias são utilizadas a cada momento histórico para atender determinadas necessidades da sociedade. Atualmente, algumas ferrovias da malha antiga, concessionadas a partir de 1996, e da malha nova, de construção recente, moderna e bitola larga (1,6 metro), estão sendo organizadas para atender o agronegócio exportador (figura). Portanto, podem ser chamadas de ferrovias do agronegócio.

Relação das ferrovias do agronegócio com os portos

Essa classificação pode ser verificada pelas características das regiões que elas atendem. A localização dos terminais e pátios ferroviários também ajudam a determinar como as ferrovias são utilizadas. Para as ferrovias que já estão em operação, o tipo de carga transportada e os vagões utilizados nas operações contribuem para entender essa classificação.

A Rumo Logística, que opera através de quatro malhas ferroviárias nos estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, possui 12.021 km de trilhos, sendo 80% de bitola métrica. Essas malhas ferroviárias foram concessionadas, em sua grande maioria, na década de 1990. A concessionária transportou 41 milhões de toneladas de produtos em 2017, sendo 83% relacionados ao agronegócio, tais como soja, farelo de soja, milho e açúcar. A frota de vagões também indica que a Rumo Logística é uma ferrovia do agronegócio, pois 53% de seus vagões são do tipo Hopper, que é o modelo mais adequado para o transporte de grãos (REVISTA FERROVIÁRIA).

A Ferrovia Norte-Sul, operada pela empresa VLI entre Porto Nacional (TO) e Açailândia (MA), também faz parte das ferrovias relacionadas ao agronegócio. Com extensão de 720 km e bitola larga (1,6 metro), é de construção recente e possui um traçado mais moderno e adequado. Transportou 7,8 milhões de toneladas em 2017, sendo 73% de produtos do agronegócio, tais como soja, farelo de soja e milho. Os vagões Hopper disponíveis correspondem a 73% da frota, de um total de 2.647 vagões da ferrovia.

Uma quantidade significativa de grãos produzidos na região norte de Mato Grosso segue por caminhão pela BR-163 até o distrito de Miritituba, município de Itaituba, no Pará. A viagem de quase mil quilômetros por rodovia será substituída, em breve, por uma ferrovia. Pelo menos é esta a proposta da Ferrogrão, mais uma que faz parte da lista de ferrovias do agronegócio. O projeto, de 933 km em bitola larga, ligará a cidade de Sinop (MT) aos vários terminais graneleiros localizados em Miritituba, na margem direita do rio Tapajós. A partir deste ponto, os grãos descem o rio em direção a Santarém (PA) para alcançar o rio Amazonas e o Oceano Atlântico.

Outras ferrovias do agronegócio estão sendo planejadas e construídas em várias regiões do país.  Um pequeno trecho da Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO), com 383 km de extensão, ligará o município de Água Boa (MT) à Ferrovia Norte-Sul em Campinorte (GO), possibilitando escoar milho e soja através dos portos em São Luís (MA). O escoamento de produtos agrícolas pelos portos do norte do país é o grande desejo dos participantes do agronegócio exportador, pois é o caminho mais próximo em direção ao Canal do Panamá e China.

As ferrovias do agronegócio possuem outras características importantes. Normalmente são perpendiculares ao litoral, monofuncionais, unidirecionais, já que voltam vazios depois de descarregar os produtos nos portos, e seus traçados atendem cidades com aptidão agrícola. Cidades industriais, populosas e já consolidadas não participam destas ferrovias. A pouca variedade de produtos transportados por elas não contribui para a formação de um verdadeiro sistema ferroviário nacional.