Desestatização e recuperação seletiva das ferrovias – 1996 a 2007

O terceiro período da história das ferrovias brasileiras teve início em 1996 com a desestatização do sistema e a realização das primeiras concessões ferroviárias à iniciativa privada. Esta desestatização também não foi um acontecimento isolado, mas verificado em vários países do mundo, como no Japão, em 1987, e na Inglaterra, em 1994.

A principal motivação para a privatização das ferrovias está relacionada às prioridades de inserção do país aos mercados internacionais via exportação de commodities agrícolas e minerais. Com relação ao agronegócio, a prioridade está no transporte de soja produzida em várias partes do Cerrado. As ferrovias, construídas em momentos anteriores de forma extravertida, ligando o interior aos portos, foram eleitas como a melhor alternativa para atender esta nova prioridade.

Localização do Cerrado

O uso da malha ferroviária neste período foi realizado de forma seletiva, privilegiando trechos mais produtivos e rentáveis. Os investimentos das concessionárias favoreceram o desenvolvimento dos corredores de exportação, formados por linhas ferroviárias perpendiculares ao litoral e de fluxo predominantemente unidirecional. Os sistemas passaram a operar de forma independente e funcional a uma reduzida variedade de produtos.

Do total de 29 mil quilômetros de malha ferroviária concessionada no período, apenas 10 mil passou a ser efetivamente utilizada. Os 19 mil quilômetros restantes foram praticamente abandonados ou subutilizados pelas concessionárias das ferrovias.

Nesse período, a reestruturação realizada melhorou a eficiência operacional das ferrovias, já que o volume transportado aumentou significativamente sem praticamente construir novas linhas.

É um período de grande preocupação com as diversas interferências verificadas entre os trens e áreas urbanas, passagens em nível e invasões de faixa de domínio. Como as interferências comprometem os fluxos das composições, reduzindo a velocidade média dos trens, as cidades passam a ser consideradas pelas concessionárias um obstáculo para a operação das ferrovias.

O processo de concessão do sistema ferroviário brasileiro resultou num aumento da produtividade das ferrovias, mas também contribuiu para o abandono de dois terços da malha, a desativação do transporte de passageiros de longa distância, o abandono ou demolição de grande parte das estações ferroviárias e a consolidação de um monopólio nos serviços de transportes.

O final do terceiro momento da periodização do sistema ferroviário é verificado quando as prioridades dos investimentos em sistemas de transportes no país se voltam para a construção de novas ferrovias, orientadas pelo agronegócio, em praticamente todas as regiões do país.

Decadência e readequação das ferrovias – 1957 a 1996

O segundo período da história das ferrovias brasileiras teve início em 1957, com a estatização de grande parte das empresas ferroviárias e a constituição da estatal RFFSA, e se estendeu até 1996, com o processo de desestatização do sistema ferroviário e da realização das primeiras concessões para o setor privado.

Assim como foi verificado com o desenvolvimento das ferrovias no século XIX, o declínio, decadência e estagnação das ferrovias também foi um fenômeno mundial, resultando, assim como no Brasil, na nacionalização de empresas ferroviárias privadas. O monopólio exercido pelas ferrovias com relação aos transportes terrestres de bens e pessoas em várias partes do mundo chega ao fim.

No Brasil, um dos principais acontecimentos que caracterizam esse segundo momento está relacionado à industrialização e à necessidade de priorizar a integração do território para a criação e o fortalecimento de um mercado interno. A partir de 1930, a sociedade agroexportadora se torna inviável e passa a priorizar os investimentos em indústrias.

Nesse contexto de franca industrialização e formação de um mercado interno unificado, na segunda metade do século XX, as ferrovias foram praticamente abandonadas por falta de cargas, já que o traçado das ferrovias, voltado para os portos exportadores, não atendia aos requisitos de integração do mercado nacional.

O desafio do país nesse segundo período passou a ser, principalmente, a distribuição de produtos manufaturados de São Paulo para o restante do Brasil, possível apenas através de uma ampla malha rodoviária. Como consequência, as cargas e os passageiros foram gradativamente migrando para o modal rodoviário e as indústrias, seguindo essa mesma lógica, começaram a se estabelecer às margens das rodovias.

Distribuição de produtos industrializados pelo sistema rodoviário

Os principais objetivos das políticas públicas verificados nesses 40 anos do segundo período foram sanear o sistema ferroviário, racionalizar a operação e desativar trechos inviáveis ou deficitários. Na década de 1950, existiam 40 empresas ferroviárias operando de forma deficitária, de um total de 44 (LOPES e SOBRINHO, 1951). A solução encontrada foi a unificação das linhas com a criação das empresas estatais RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) e Fepasa (Ferrovia Paulista S.A.).

O segundo período chega ao fim quando a sociedade passa a priorizar a inserção do país aos mercados internacionais via exportação de commodities agrícolas e minerais, com uma ocupação mais sistemática de porções do Cerrado por uma agricultura moderna. Um novo momento da história das ferrovias se inicia quando as ferrovias são eleitas como a melhor alternativa para atender ao transporte dessas commodities.


LOPES, J. C.; SOBRINHO, B. M. Dois estudos sobre transportes. Rio de Janeiro: Bibliex, 1951.

A Primeira Revolução Chandleriana

O desenvolvimento das ferrovias no início do século XIX promoveu grandes transformações sociais em diversos países no mundo. O momento foi tão marcante que os autores Bressand & Distler, em 1995, chamaram o período compreendido entre o início do século XIX e início do século XX de Primeira Revolução Chandleriana (BRESSAND & DISTLER, 1995). Foi uma maneira de homenagear Alfred Chandler, autor do livro The Visible Hand, The Managerial Revolution in American Business, que trata das mudanças no mundo dos negócios promovidas pelas ferrovias nos Estados Unidos da América.

As ferrovias contribuíram para o início de uma nova sociedade, de uma nova relação entre agentes, países e regiões e para uma organização espacial muito mais complexa. Esta nova realidade alterou profundamente as relações econômicas entre diferentes localidades, reduziu a distância medida em tempo e custo e formou grande parte das cidades que conhecemos atualmente. Com as ferrovias foi o começo do fim do isolamento das pessoas e das regiões em diversos países.

As trocas mercantis aumentaram e contribuíram para o surgimento de regiões especializadas em determinado tipo de produto. As empresas, até então de abrangência local, passaram a atuar nas escalas nacional e internacional. A organização das empresas foi possível, também, graças ao uso do telégrafo, que evoluiu junto com as ferrovias.

A partir do surgimento das empresas ferroviárias, um novo ambiente normativo foi sendo instituído para regular o funcionamento das ferrovias e da dinâmica do sistema. As normas definiram também grande parte do funcionamento da sociedade e das regiões, que passaram a ter como parâmetro de organização e de circulação os horários e os traçados das ferrovias.

O emprego dessas novas técnicas, a ferrovia e o telégrafo, permitiu a aceleração do fluxo de pessoas e de bens materiais e imateriais, como informação, relatórios e cotações de preços. Utilizada primeiramente pelas empresas e organizações, essas técnicas permitiram as primeiras percepções da instantaneidade e da possibilidade da ação à distância quase que de forma imediata. Para o Geógrafo Milton Santos, foi o início da convergência dos momentos e de um novo uso do tempo e do espaço (SANTOS, 2002a). Os avanços foram tremendos, porém a instantaneidade percebida não era completa, total, como a do período atual, pois ainda o tempo era estabelecido por intermediários que tinham seus horários de funcionamento e atrasos na distribuição dos sinais utilizando os sistemas de comunicação da época.

A Primeira Revolução Chandleriana foi o período que deu início à emergência de espaços mais racionais e ao processo de transportar o nacional, e depois o universal, ao local. As ferrovias não só ligavam os lugares ao mundo, como ligavam o mundo aos lugares. E isso se dava através da troca de mercadorias, de ideias, de informações, de normas e de experiências. As ferrovias ajudaram, também, na origem de um complexo sistema de divisão internacional do trabalho, devido ao incremento da produtividade nos transportes (FURTADO, 1974).

O surgimento das ferrovias promoveu uma revolução tão grande que alguns autores subdividiram a circulação interna em primitiva, para o período anterior ao advento das ferrovias, e atual, para o período que compreende o uso das ferrovias e rodovias modernas (SILVA, 1949). Antes das ferrovias, a circulação interna estava restrita às técnicas de navegação fluvial e por canal, que tinham uma topologia mais rígida, pouco flexível, proporcionando velocidades reduzidas. Através das ferrovias, o território pôde ser integrado e os tempos de viagem encurtados tremendamente.

Os sistemas de transporte evoluíram consideravelmente após o surgimento das ferrovias e, na mesma direção, foram a organização de empresas e países. As escalas de planejamento mudaram, possibilitando a unificação das ações e a especialização e diferenciação das regiões. A valorização e desvalorização dos espaços é marcante nesse período de evolução das ferrovias e as dinâmicas das regiões, dos países e da sociedade se transformaram. O poderio mercantil, que estava restrito principalmente aos portos, avança agora sobre o interior dos territórios com grande velocidade.

O surgimento das ferrovias contribuiu, também, para a organização das relações comerciais e sociais entre regiões, países e continentes. Modificaram, também, a configuração territorial de muitos países, como foi o caso dos Estados Unidos da América que, na segunda metade do século XIX, conseguiram integrar o país e transformar a atuação das empresas de regional para nacional e depois para internacional (CHANDLER, 1998).

No Brasil, as ferrovias tiveram um papel importante na organização da região oeste do estado de São Paulo. Elas foram construídas para atender o escoamento da produção do café destinada às exportações, mas contribuíram também para a criação de muitas cidades do interior paulista. O geógrafo francês Pierre Monbeig foi um dos pesquisadores que trataram deste assunto. Para ele, sobre o oeste paulista é mais exato falar em regiões ferroviárias, que de regiões geográficas ou econômicas (MONBEIG, 1984). Através das ferrovias, novas cidades foram criadas e muitas outras ganharam uma importância regional. A criação de cidades e regiões só foi possível porque as ferrovias exerceram o monopólio dos transportes terrestres. Atualmente, esta função está sendo realizada pelas rodovias.

No período apresentado, cada país participou da revolução proporcionada pelas ferrovias de uma maneira muito particular. Alguns integraram seus territórios, ligando as principais cidades com o objetivo de transportar cargas e passageiros. Outros, construíram sistemas ferroviários funcionais à atividade exportadora de commodities. A história tem demonstrado que as respostas foram diferentes em cada país pela forma como as ferrovias foram construídas e organizadas.

Enquanto nos Estados Unidos da América as ferrovias contribuíram significativamente para criar um mercado interno, no Brasil as mesmas foram utilizadas para transportar produtos selecionados, de baixo valor agregado, aos mercados europeus. Sistemas ferroviários voltados à exportação de commodities foram construídos em vários países do mundo, principalmente nas ex-colônias europeias.


BRESSAND, A; DISTLER, C. La planète relationnelle. França: Flammarion, 1995.

CHANDLER, A. Ensaios para uma teoria histórica da grande empresa. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.

FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

MONBEIG, P. Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984.

SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2002.

SILVA, M. M. F. Geografia dos Transportes no Brasil. Serviço Geográfico do Instituto de Geografia e Estatística. Rio de Janeiro: IBGE, 1949.

Desenvolvimento das ferrovias – 1835 a 1957

Para compreender o período de desenvolvimento das ferrovias no país, que vai de 1835 a 1957, é necessário analisar como estava organizada a sociedade e a economia brasileira na primeira metade do século XIX.

O território era formado por um conjunto de arquipélagos (ARAÚJO, 2000; BARAT, 1978; COUTO E SILVA, 2003), cujas economias regionais eram independentes e não se relacionavam entre si. As diferentes regiões estavam interligadas às economias europeias, sendo, portanto, um prolongamento de sistemas econômicos maiores. As ferrovias foram construídas, no período analisado, para atender demandas de uma sociedade agroexportadora.

O desenvolvimento das ferrovias no Brasil teve início em 1832 através da Lei 100, de 31 de outubro de 1835, que autorizava a Regência a fazer concessões para as empresas que se propusessem a construir estradas de ferro entre Rio de Janeiro e Minas Gerais e entre Rio Grande do Sul e Bahia. A primeira ferrovia, Estrada de Ferro Mauá, foi inaugurada somente em 1854 no Rio de Janeiro.

Mas foi o café, produto que dominou a economia nacional no período de desenvolvimento das ferrovias, que mobilizou diversos investimentos na criação de empresas ferroviárias. De uma forma geral, as linhas foram construídas para interligar as regiões produtoras de produtos primários aos portos exportadores, com seus traçados, em grande parte, perpendiculares ao litoral.

Relação das ferrovias com os portos em 1910 (PASSOS, 1952)

Numa tentativa de desenvolver as estradas de ferro, foram promulgadas as leis de garantia de juros e das subvenções quilométricas. Estas leis foram um incentivo à ineficiência na construção e operação das ferrovias (TELLES, 1994), fazendo com que as estradas fossem as mais baratas possíveis, sem recortes, túneis e pontes e, consequentemente, com muitos desvios e curvas.

Nesse período de 123 anos, o monopólio das ferrovias no transporte de cargas e passageiros era uma realidade. Foram construídos, aproximadamente, 35 mil quilômetros de linhas. Os sistemas independentes, que não seguiam um plano de conjunto, resultaram numa grande diversidade de bitolas e material rodante. A integração das malhas não era prioridade, portanto, não existia de fato um sistema ferroviário nacional.

A decadência das ferrovias brasileiras foi o resultado de diversos acontecimentos surgidos a partir da crise de 1929. O principal deles foi o declínio das exportações do café, que contribuíram para a inviabilização econômica das ferrovias. Com a tentativa de recuperação e readequação das empresas ferroviárias, através da criação da estatal RFFSA em 1957, inicia-se o segundo período da história das ferrovias brasileiras.


ARAÚJO, T. B. Dinâmica Regional Brasileira nos anos Noventa: Rumo à Desintegração Competitiva?. In: CASTRO, I. E; MIRANDA, M.; EGLER, C. A. G., (org.). Redescobrindo o Brasil: 500 anos depois. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.

BARAT, J. A evolução dos transportes no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE: IPEA, 1978.

COUTO E SILVA, G. Geopolítica e poder. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2003.

PASSOS, E. Plano Nacional de Viação e Conselho Nacional de Transporte (Projetos nº 326-A e 327 de 1949). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1952.

TELLES, P. C. da S. História da Engenharia no Brasil (Séculos XVI à XIX). Rio de Janeiro: Clavero, 1994.