O processo de privatização das ferrovias brasileiras, realizado na década de 1990, promoveu grandes mudanças no sistema ferroviário até então sob controle estatal. Os novos controladores do sistema passaram a privilegiar o transporte de commodities aos principais portos exportadores.
Para garantir o controle máximo dos fluxos destas commodities, a desestatização do sistema ferroviário brasileiro buscou eliminar diversas reminiscências e remanescências que não interessavam mais à realidade atual que se impôs. Em outras palavras, as políticas públicas passaram a atuar para suprimir diversas heranças materiais e imateriais que tinham utilidade no passado, mas que, no momento atual, não interessavam mais.
Estas heranças envolvem o traçado das vias, o material rodante, as estações ferroviárias, as passagens em nível, os prédios, as áreas urbanas, os sindicatos, a organização de funcionários e a dinâmica social e econômica da área ao redor das estações ferroviárias. A desestatização teve como objetivo rearrumar ou contornar essas heranças, muitas vezes chamadas de gargalos ou obstáculos, de tal maneira que os objetivos de competitividade dos diversos agentes envolvidos pudessem ser alcançados.
O processo de privatização praticamente eliminou o transporte de passageiros de longa distância e toda a infraestrutura utilizada na realização desse serviço foi abandonado e considerado, sem grandes questionamentos, como um grande problema. As estações ferroviárias existentes perderam a função e passaram a ser classificadas, a partir de então, como componentes que reduzem a fluidez das ferrovias.
As estações ferroviárias, utilizadas no passado para o transporte de passageiros, foram desativadas, demolidas, abandonadas ou reutilizadas para outros fins diferentes daqueles para os quais foram originalmente concebidos. Passaram a desempenhar outras funções e atividades, como museus e centros culturais controlados, em muitos casos, pelas prefeituras.
Além das estações ferroviárias, outros patrimônios ferroviários também foram desconsiderados e esquecidos pelo processo de privatização, tais como pátios de manobras, edifícios de manutenção e administração e material rodante (locomotivas elétricas, diesel e a vapor, vagões de cargas e passageiros e veículos de serviço) (Figura 1). A falta de uma política pública específica para tratar desse assunto está condenando um patrimônio valiosíssimo, em grande parte importado, que foi construído nos últimos 150 anos.
A privatização eliminou uma cultura ferroviária que passava de geração para geração, sempre acompanhada de sentimentos e emoções. Ao contrário do se imagina, o patrimônio histórico e cultural das ferrovias deve ser utilizado para promover o próprio uso do sistema ferroviário no presente. O processo de privatização não considerou a criação de um fundo, formado por contribuições das próprias concessões ferroviárias, para tratar da história das ferrovias. Enquanto essa realidade não se modifica, as associações que promovem a preservação ferroviária fazem o que podem.