Realidades muito diferentes

No início do século XIX, as ferrovias começaram a ganhar o mundo. Os trens promoveram transformações sociais em todos os países ou regiões em que foram construídos. Houve uma revolução no transporte terrestre, com um aumento extraordinário nas quantidades de cargas e pessoas transportadas. A expansão das linhas ferroviárias permitiu reduzir os tempos e os custos das viagens.

As ferrovias modificaram a configuração territorial de muitos países, como foi o caso dos Estados Unidos que, na segunda metade do século XIX, conseguiram integrar o país e transformar a atuação de muitas empresas de regional para nacional e depois para internacional. Graças às ferrovias, grandes potências, como os Estados Unidos da América, com 260 mil km de linhas, e a Rússia, com 30 mil, consolidaram a integração de seus territórios no final do século XIX. Nestes países, assim como em grande parte da Europa, quando o automóvel se impôs no início do século XX, já estava terminada a era da construção ferroviária, ou seja, já existia uma rede coesa de estradas de ferro.

Figura 1 – Locomotiva da Norfolk Southern em Raleigh, NC, EUA

Os países que construíram ferrovias o fizeram para atender necessidades muito particulares. É possível, no entanto, classificá-los pela maneira como as ferrovias foram construídas. Alguns países construíram seus sistemas ferroviários para promover a integração do mercado interno, ligando as principais cidades, assim como os principais portos. Outros criaram os sistemas para ligar regiões agrícolas e minerais aos portos, organizando seus territórios para atender os mercados externos. São duas realidades muito diferentes, o que dificulta comparar os sistemas ferroviários existentes.

O Brasil, assim como em alguns países da África, está inserido no segundo grupo. O sistema foi construído para realizar o transporte e exportação de produtos primários, como o café. Desta forma, as linhas principais ligavam regiões de produção agrícola aos principais portos exportadores. No final do século XIX, o país contava com 12 mil km de linhas, grande parte delas perpendiculares ao litoral e formando sistemas isolados. A partir de 1990, as ferrovias foram privatizadas para atender, novamente, a exportação, mas agora compreendendo produtos como minério e soja.

Os EUA, por sua vez, criaram um sistema no século XIX que foi fundamental para desenvolver o mercado interno. Isso foi possível pela criação de uma complexa rede de linhas ferroviárias que ligavam a costa leste à oeste. As principais cidades, regiões industriais e portos estavam conectados a este amplo sistema ferroviário, que chegou a ter mais de 400 mil km de linhas no início do século XX. Atualmente, as ferrovias americanas possuem, aproximadamente, 224 mil km de linhas, cujas cargas são transportadas por 7 empresas principais, conhecidas como Classe 1, além de 21 regionais e 510 locais. Os serviços de transportes envolvem uma variedade de produtos, tais como agrícolas e florestais, materiais de construção, veículos, produtos químicos, carvão, etanol e óleo combustível.

Trilhos em Piracicaba

Por um período de quase um século, Piracicaba manteve uma relação intensa e empolgante com os caminhos de ferro. Os trens participaram da vida dos piracicabanos de forma tão significativa que permanecem na memória de muitos até os dias atuais.

Eram novidades que representavam o progresso, pelos grandes benefícios proporcionados. Os trilhos ligavam a cidade a outros centros urbanos importantes, monopolizando o transporte de cargas e passageiros. O município contava com várias estações de companhias ferroviárias importantes no país, tais como a Ituana/Sorocabana e a Paulista. No distrito de Artemis, um porto com estrutura e pêra ferroviária era utilizado como terminal para a transferência de cargas entre ferrovia e as embarcações no rio Piracicaba.

Três linhas de bondes (tramways) também contribuíram muito para Piracicaba (Figura 1). Os trilhos cortavam a cidade em três linhas, facilitando a locomoção dos piracicabanos entre o centro e a Estação da Paulista, Vila Rezende e Escola Agrícola (Esalq). Os serviços entraram em operação em 1916 e perduraram por quase 50 anos.

Figura 1 – Bondes na Esalq/USP

Dois importantes produtores de açúcar de Piracicaba, a Usina Monte Alegre e o Engenho Central (Figura 2), utilizaram os trens em seus sistemas produtivos. Com uma rede bem estruturada, ligando os canaviais às usinas, o transporte de cana foi realizado com muita eficiência e sucesso.

Figura 2 – Trilhos no Engenho Central de Piracicaba

É importante destacar, também, que a cidade teve uma participação singular na produção de locomotivas. A primeira de fabricação nacional, de nome Fúlvio Morganti, foi construída na Usina Monte Alegre em 1938 por João Bottene, considerado o “gênio da mecânica”. Outras locomotivas importantes fabricadas por Bottene para o transporte de cana-de-açúcar na Usina Monte Alegre foram Maria Helena, movida a álcool, e Dona Joaninha (Figura 3), atualmente repousando numa praça em Guarulhos.

Figura 3 – Locomotiva Dona Joaninha (Foto: São Paulo Antiga)

A relação dos piracicabanos com as ferrovias está presente também na Paulista, bairro que recebeu este nome como referência ao prédio da estação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro inaugurado em 1922.

As referências históricas apresentadas mostram que, ao contrário do que muitos dizem até os dias atuais, Piracicaba nunca foi fim de trilho. Essa era uma visão limitada aos interesses das empresas ferroviárias.

Para a cidade, o que importa é que os trilhos ajudaram os piracicabanos em suas demandas, possibilitando construir diversas histórias de sucesso que gostamos de contar. Piracicaba tem o privilégio de ser o centro de muitas realizações importantes que contribuíram para o país. Se os piracicabanos entenderem a importância das ferrovias, talvez elas voltem a apitar novamente entre nossas colinas.

Paranapiacaba: a vila dos ingleses

Um dos mais importantes patrimônios ferroviários do Brasil está localizado na Vila de Paranapiacaba, município de Santo André. A história ferroviária do século XIX pode ser verificada na arquitetura e em grande parte dos equipamentos espalhados pelo pátio ferroviário.

Na parte alta da vila, logo na entrada, está a Paróquia de Sr. Bom Jesus de Paranapiacaba, fundada em 1889. Um pouco mais adiante, ainda na parte alta, há dezenas de prédios residenciais e comerciais de arquitetura europeia, organizadas em ruas estreitas e sinuosas.

Descendo uma ladeira, é possível ter uma visão geral do pátio ferroviário de Paranapiacaba, inaugurado em 1867 pela São Paulo Railway. Esta ferrovia tinha como principal objetivo transportar café do interior paulista ao porto de Santos. Os prédios, oficinas e estações localizados neste pátio foram criados para dar suporte ao sofisticado sistema funicular utilizado para que as composições pudessem vencer a Serra do Mar.

Devido à grande inclinação, os trens eram puxados por cabos de aço ligados a grandes máquinas movidas a vapor. Este sistema, desativado em 1982, é referência em diversas publicações sobre ferrovias, pela sua grandeza, complexidade e importância para a engenharia ferroviária mundial. Em 1974, foi inaugurado o sistema de cremalheira, utilizado atualmente por locomotivas elétricas por ser muito mais eficiente do que o funicular.

Muitas das construções existentes no pátio ferroviário foram erguidas com a utilização de materiais importados. A torre do relógio lembra muito a torre do sino Big Ben do Palácio de Westminster, em Londres (Figura 1). É a construção mais emblemática do pátio ferroviário. O relógio foi fabricado pela empresa inglesa Johnny Walker Benson.

Figura 1 – Vila de Paranapiacaba – Santo André (SP)

No alto de uma colina está localizada, estrategicamente, a casa do engenheiro chefe que era responsável por todas as operações do pátio ferroviário. Foi construída em 1897 para acompanhar a descida e subida dos trens e demais atividades nas oficinas e estações.

Há muitas placas de sinalização antigas, contendo inscrições como “sahida”, “prohibida” e “machina”, que permitem entender o português utilizado no século passado.

No pátio ferroviário há uma grande quantidade de material rodante antigo, tais como vagões de cargas, vagões de passageiros, veículos de linha e veículos de manutenção. Todos aguardando por restauro. No Museu do Funicular há equipamentos ferroviários utilizados no século XIX, tais como um vagão funerário e o carro utilizado pelo Imperador D. Pedro II.

Um trem formado por uma locomotiva a vapor e um vagão de passageiros de madeira pode ser utilizado pelos visitantes mediante programação. A locomotiva, da São Paulo Railway, é a de número 10, fabricada em 1867 pela Sharp Stewart Limited.

Figura 2 – Locomotiva Sharp Stewart Limited

A Vila de Paranapiacaba leva o visitante para um momento histórico muito importante do país, em que grande parte dos equipamentos, estruturas e organização do espaço era definida pelos ingleses para atender seus próprios interesses.

Engenharia ferroviária

Até meados do século XIX, a engenharia no Brasil estava limitada a construção de edifícios públicos, instalações portuárias, fortificações militares e algumas poucas indústrias. Todas obras de pouca complexidade para a engenharia, principalmente se considerarmos que os projetos e grande parte das estruturas utilizadas na construção poderiam ser importadas em sua totalidade.

A construção das ferrovias, por outro lado, trouxe grandes desafios e contribuições para a engenharia brasileira. Primeiro, porque as obras ferroviárias envolviam grandes distâncias, em regiões muitas vezes inexploradas e desconhecidas. A falta de mapas e o pouco conhecimento sobre o território brasileiro dificultavam o trabalho dos construtores de ferrovias.

Segundo, e diferentemente das rodovias, as estradas de ferro precisam ser construídas com rampas mínimas, para que o sistema roda-trilho funcione adequadamente. Se a inclinação não for respeitada, a tração da locomotiva é prejudicada e a roda motriz patina no contato com o trilho. Esta condição fundamental passa a exigir um traçado mais plano, possível através da construção de muitas pontes e túneis e da movimentação de grande quantidade de terra para a formação de cortes e aterros. Por ter utilizado tecnologias construtivas precárias, considerando a realidade do presente, as obras ferroviárias do passado são muito valorizadas atualmente.

No Brasil, há diversas exemplos que mostram os grandes desafios da engenharia na construção das estradas de ferro. A ferrovia entre Curitiba e o porto de Paranaguá, construída no final do século XIX, possui dezenas de obras de arte ferroviária importantes (túneis, pontes e viadutos) que ajudam os trens, até os dias atuais, a vencer a Serra Paranaense.

Para superar a Serra do Mar, fazendo a ligação entre o planalto paulista e o porto de Santos, a Ferrovia Santos Jundiaí (São Paulo Railway) construiu, em meados do século XIX, uma sofisticada obra de engenharia que envolvia quatro planos inclinados, viadutos, túneis e muros de arrimo. O sistema funicular utilizado era considerado, à época, o mais importante do mundo pela sua extensão (aproximadamente 8.100 m) e diferença de nível (800 m) (Figura 1).

Figura 1 – Museu do Funicular, Paranapiacaba, Santo André, SP

Mais recentemente, o 1º Batalhão Ferroviário do Exército Brasileiro construiu um dos viadutos ferroviários mais importantes para a engenharia mundial. Localizado no município de Vespasiano Corrêa, Rio Grande do Sul, o Viaduto 13 faz parte da Ferrovia do Trigo e foi inaugurado em 19 de agosto de 1978 (Figura 2). Também conhecido como Viaduto do Exército, possui 143 metros de altura e 509 metros de comprimento. As dimensões exageradas dos pilares de concreto revelam os desafios no transporte e manuseio da grande quantidade de material empregado na construção.

Figura 2 – Viaduto 13, Vespasiano Corrêa, RS

As grandes obras de engenharia no país, iniciadas a partir de meados do século XIX com as ferrovias, foram realizadas por engenheiros estrangeiros reconhecidos internacionalmente. Estes engenheiros contribuíram para a formação da engenharia brasileira e a organização de diversas instituições de ensino no Brasil. Estas e outras histórias da engenharia brasileira podem ser verificadas com mais detalhes nos dois volumes do livro História da Engenharia no Brasil, do autor Pedro Carlos da Silva Telles, editados pelo Clube de Engenharia do Rio de Janeiro.

A história da engenharia também está presente no patrimônio ferroviário formado por farto material rodante e por centenas de estações ferroviárias espalhadas pelo país, muitas delas com estruturas e equipamentos importados.