Ferrovias na África

A história das ferrovias brasileiras não pode estar desconectada de diversos acontecimentos verificados no mundo a partir do século XIX. Para entendê-la, é necessário buscar subsídios históricos do período colonial, da revolução industrial, do capitalismo e do processo de financeirização global verificado recentemente. As respostas para muitas perguntas sobre as ferrovias do país podem ser encontradas, portanto, na história mundial.

É muito comum comparar a situação das ferrovias existentes nos diferentes países, usando, geralmente, as americanas como referência de sucesso. As ferrovias brasileiras, no entanto, são muito mais parecidas com as africanas do que com as americanas e europeias. Olhando um pouco mais para a África é possível entender o passado e o futuro do sistema ferroviário nacional.

O continente africano conta, atualmente, com 90 mil km de linhas, aproximadamente, sendo que 22% está localizada na África do Sul (Figura 1). A história das ferrovias na África é muito parecida com a de outros países no mundo e pode ser dividida em três momentos distintos: desenvolvimento, declínio e reativação.

Figura 1 – Mapa das ferrovias da África

No período de desenvolvimento, as ferrovias africanas foram construídas com objetivos muito parecidos com os verificados no Brasil. A introdução do transporte por trens em muitos países fazia parte do projeto colonial das metrópoles. A ferrovia era considerada um fator estratégico para a colonização. Para Henry Morton Stanley, um dos responsáveis pela ocupação da África Central em meados do século XIX, para colonizar era preciso transportar.

A vocação das empresas ferroviárias africanas estava muito relacionada ao transporte de produtos primários de baixo valor agregado e alto volume em direção aos portos exportadores. Alcançando os portos, os produtos seguiam para a Europa. No sentido contrário, produtos importados chegavam nos portos africanos e eram transportados por ferrovias para os principais locais de consumo na África.

Por serem ferrovias em grande parte independentes e monofuncionais, elas foram construídas com bitolas diferentes, o que representa, até os dias atuais, uma dificuldade na integração das malhas. Grande parte das linhas ferroviárias na África foi construída perpendicular ao litoral, demonstrando sua função extravertida.

No século XX, as ferrovias africanas também passaram a competir com as rodovias, opção de transporte muito mais flexível e de construção mais barata. O declínio das ferrovias africanas se deu, portanto, pela falta de carga e passageiros, pouca renovação do material rodante, estrutura das empresas ferroviárias deficientes, injunções políticas e corrupção. Todos estes problemas alimentaram, já no final do século XX, os movimentos de liberalização, sob influências de organismos internacionais, como Banco Mundial e FMI, que condicionaram os empréstimos a uma mudança estrutural nos países africanos. Já no período recente de reativação, as linhas ferroviárias mais rentáveis foram privatizadas, utilizando como preferência a modalidade de concessão.

Atualmente, instituições e empresas da China estão realizando grandes investimentos nas ferrovias africanas. A modernização dos sistemas é seletiva, priorizando os fluxos de produtos para exportação. Há, também, outros interesses envolvidos, como a venda de serviços, infraestrutura ferroviária e material rodante por parte de empresas chinesas. De uma forma geral, os países africanos, assim como o Brasil, continuam dependentes dos países demandantes de commodities agrícolas e minerais. Nesta lógica, as ferrovias passam a ser limitadas às necessidades externas, restringindo os demais serviços de transportes à modalidade rodoviária.

Referência : CHALÉARD, J.; CHANSON-JABEUR, C.; BÉRANGER, C. Le chemin de fer en Afrique. França: Karthala, 2006.

Museu dos Transportes da Carolina do Norte (EUA)

A preservação e divulgação da memória ferroviária são atividades fundamentais para auxiliar no desenvolvimento das ferrovias no presente. As ações realizadas no período atual precisam estar fundamentadas ou relacionadas a exemplos já realizados e aprovados no passado. A memória das ferrovias está presente na história de empresas ferroviárias, locomotivas a vapor, locomotivas diesel, vagões, estações ferroviárias, oficinas, viadutos e pontes, rotundas e tantas outras instalações relacionadas aos trens.

Os museus ferroviários desempenham importante papel nesta relação do passado com o presente das ferrovias. Para atender este objetivo, centenas de museus estão espalhados pelo mundo. Nos Estados Unidos da América, país que possui o sistema ferroviário mais amplo e importante do mundo, há mais de 100 museus distribuídos em praticamente todos os estados americanos. Um dos mais interessantes e importantes está localizado na cidade de Spencer, no estado da Carolina do Norte.

O Museu dos Transportes da Carolina do Norte (North Carolina Transportation Museum), inaugurado em 1977 e aberto ao público em 1983, está localizado nas antigas oficinas da empresa ferroviária Southern Railway Company. Estas oficinas, inauguradas em 1896, foram construídas em Spencer pois estavam num ponto estratégico entre Atlanta, capital da Geórgia, e Washington,  capital do país. O nome da cidade é uma homenagem ao primeiro presidente da empresa ferroviária, Samuel Spencer.

Na fase áurea das ferrovias americanas, início do século XX, as oficinas em Spencer chegaram a atender entre 75 e 100 locomotivas a vapor diariamente. Com a utilização de locomotivas a diesel, que exigiam menos manutenção, as locomotivas a vapor perderam espaço e as oficinas entraram em declínio. Em 1960, elas encerraram suas atividades definitivamente.

A criação do museu permitiu resgatar muitas histórias importantes sobre as ferrovias americanas e as oficinas de Spencer. Os visitantes podem voltar ao passado através de várias atividades realizadas na parte externa e nos diversos prédios existentes. Na pequena sala de cinema, os filmes contam a história da empresa ferroviária, das oficinas e da cidade. Os ambientes procuram representar como os trabalhadores desempenhavam suas funções, tanto nos escritórios como nas oficinas.

Os visitantes têm acesso a amplo material de transportes, grande parte formada por vagões de passageiros e carga, locomotivas a vapor (Figura 1) e diesel. O acervo conta com muitos vagões do século XIX, utilizados por importantes empresários e políticos, assim como carros do serviço postal e do exército. Muitos deles estão perfeitamente restaurados e em operação.

Figura 1 – Locomotiva do Museu dos Transportes da Carolina do Norte, Spencer (NC)

Na rotunda há diversas locomotivas e vagões em exposição ou em manutenção. Voluntários de diversas partes do mundo visitam o museu para trabalhar no restauro do acervo existente. É uma oportunidade única para estes amantes dos trens. Como todo ponto turístico nos EUA, o museu conta com uma loja para a venda de todos os tipos de lembranças, tais como brinquedos, roupas, canecas, chaveiros e tantos outros itens relacionados ao museu e às ferrovias.

O Museu dos Transportes da Carolina do Norte está em constante transformação, com novas instalações, serviços e atrações. É um ótimo exemplo a ser seguido.

Transporte ferroviário de passageiros nos Estados Unidos

O transporte de passageiros de longa distância nos Estados Unidos é realizado pela empresa Amtrak (National Railroad Passenger Corporation) (Figura 1). Atende 500 localidades em 46 estados americanos, além de algumas cidades canadenses. A operação ferroviária inclui mais de 300 trens e 35 mil km de linhas.

Figura 1 – Trem da Amtrak na estação de Raleigh, Carolina do Norte, EUA (2008)

Desde sua criação, em 1971, está apresentando resultados negativos em seus balanços. Os prejuízos constantes têm gerado muitas discussões entre os americanos sobre a necessidade ou não de privatizar a empresa. Não há consenso se os serviços de transportes, como o ferroviário de passageiros, devem ser considerados um negócio ou um serviço público. São posições completamente diferentes, que influenciam diretamente na qualidade dos serviços prestados.

Os defensores da privatização procuram utilizar a conhecida equação “estatal é ruim” e “privado é bom”. Para eles, a privatização traria melhor eficiência para o sistema, resultando em lucros e retorno sobre os investimentos da empresa ferroviária. Mas existe uma lógica de mercado que precisa ser considerada. A operação privada destes serviços passaria a priorizar rotas ferroviárias mais lucrativas e a eliminar as deficitárias.

A realidade tem demonstrado que os sistemas de transportes nos Estados Unidos estão sempre operando com o auxílio de algum subsídio público.  As tarifas provenientes dos serviços prestados não são suficientes para pagar os investimentos realizados na construção das infraestruturas de rodovias, ferrovias e aerovias. Portanto, a intervenção estatal é fundamental para a existência destes serviços.

Para os especialistas que defendem a não privatização, os benefícios oferecidos pela Amtrak dificilmente podem ser medidos pelos modelos de negócios usualmente utilizados. O valor dos serviços oferecidos vai muito além dos números e observações de um relatório contábil.

Além de transportar encomendas e passageiros, a Amtrak contribui com a sociedade americana através da economia de energia, redução de poluentes, independência quanto ao uso de combustíveis fósseis e segurança nacional, pois oferecem redundância em caso de outros sistemas de transportes falharem. Além disso, atendem regiões agrícolas dependentes das ferrovias, cujos serviços não podem ser interrompidos pois garantem a manutenção das atividades locais.

O país mais capitalista do mundo entende a importância de manter um sistema de transporte ferroviário de passageiros, mesmo que seja deficitário em suas operações. A Amtrak, que realizou no último ano 37 milhões de viagens, é um bom exemplo de um serviço público que prioriza o interesse da sociedade.

É através desta visão mais ampla que os sistemas de transportes deveriam ser analisados e considerados. A condução das políticas de transportes no Brasil deveria ser rediscutida, considerando outras opções e alternativas praticadas ao redor do mundo.

Ferrovias na América do Norte

O maior e mais importante sistema de transporte ferroviário existente no mundo está localizado na América do Norte. Com mais de 200 mil km de linhas, diversas empresas ferroviárias interligam os Estados Unidos da América, Canadá e México e oferecem uma gama de serviços de transportes que incluem passageiros e uma variedade muito grande de cargas.

A Amtrak (National Railroad Passenger Corporation), criada em 1971, é a empresa responsável pelo transporte de passageiros de curta e média distâncias nos Estados Unidos e parte do Canadá (Figura 1). Subsidiada pelo governo, está cumprindo seu papel social ao atender mais de 500 localidades em 46 estados americanos, além de algumas cidades canadenses. A operação ferroviária inclui mais de 300 trens e 35 mil km de linhas, grande parte delas compartilhada com os trilhos das ferrovias de cargas.

Figura 1 – Amtrak na estação de Raleigh, NC, EUA

Quanto ao transporte de cargas, a principal empresa, BNSF Railway, atende 28 estados localizados nas regiões central e oeste dos Estados Unidos. Opera em mais de 52 mil km de linhas, utilizando 8 mil locomotivas e 85 mil vagões de cargas. Transporta uma grande variedade de produtos e tem uma presença muito importante no transporte intermodal.

A segunda empresa mais importante é a Union Pacific Railroad, competidora direta da BNSF Railway, já que opera também das regiões central e oeste dos Estados Unidos. Possui aproximadamente 8.500 locomotivas e 95 mil vagões de cargas, realizando os serviços em 50 mil km de linhas.

A costa leste dos Estados Unidos é atendida por duas empresas ferroviárias importantes, a Norfolk Southern Railway (Figura 2) e CSX Transportation. A primeira realiza seus serviços em 34 mil km de linhas, utilizando mais de 4 mil locomotivas e 62 mil vagões de cargas. A segunda, 34 mil km de linhas, 3,5 mil locomotivas e 78 mil vagões de cargas.

Figura 2 – Norfolk Southern em pátio ferroviário de Raleigh, NC, EUA

A ligação ferroviária entre Canadá e Estados Unidos é realizada através das empresas Canadian National Railway e Canadian Pacific Railway. A operação destas duas companhias envolve um total de aproximadamente 52 mil km de linhas. Para o México, as cargas seguem pela Kansas City Southern Railway, ferrovia com 2.500 km de extensão, mil locomotivas e 20 mil vagões.

A principal característica das ferrovias da América do Norte é que elas funcionam como um sistema, pois interligam cidades, indústrias, regiões agrícolas e portos em grande parte do território norte americano. Além disso, oferecem uma variedade enorme de serviços com o uso de outras modalidades de transportes, tais como rodovias e hidrovias.

Para entender o sucesso destas ferrovias é importante considerar que elas não são formadas apenas por infraestruturas, trilhos, material rodante, cargas e pessoas. Seu sucesso está relacionado à existência de um ambiente normativo muito organizado, formado por instituições que extrapolam a regulação e operação dos serviços de transporte ferroviário e se debruçam sobre as necessidades da sociedade.

Nota: informações e dados referentes ao ano de 2018