Ferrovia do diabo

A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) ficou conhecida como a Ferrovia do Diabo pelos grandes desafios e tragédias durante sua construção e operação. Localizada em Rondônia, sua história começa em meados do século XIX e poderia render filmes de diversos gêneros, tais como aventura, comédia, romance, drama e terror.

A construção da ferrovia está relacionada, principalmente, com a necessidade da Bolívia em acessar o Oceano Atlântico e as principais rotas comerciais para os EUA e Europa, já que o Canal do Panamá ainda não existia. Três opções em discussão possibilitavam o acesso dos bolivianos ao Atlântico: pelo oeste, saindo dos portos do Oceano Pacífico e passando pelo Estreito de Magalhães; pelo sul, passando pelo Paraguai e alcançando os portos da Argentina e Uruguai, na foz do rio Paraguai; pelo norte, utilizando os rios Madeira e Amazonas (Figura 1).

Figura 1 – Alternativas de comunicação da Bolívia com Estados Unidos e Europa

A saída pelo norte, utilizando os dois rios brasileiros, era a opção mais interessante. No entanto, as corredeiras do Madeira não permitiam uma navegação plena pelo rio, o que fazia das viagens um grande desafio. A primeira solução apresentada em meados do século XIX por empresas internacionais era canalizar o rio. O projeto não foi aprovado, pois a grande novidade à época em todo o mundo era a construção de ferrovias.

Na segunda metade do século XIX, algumas tentativas inglesas de construir a ferrovia fracassaram. O rio Madeira, utilizado para transportar os equipamentos e trabalhadores, e a floresta amazônica foram os grandes vilões da história da construção da ferrovia. A bravura das águas e cachoeiras afundou muitas embarcações e equipamentos se perderam no fundo do rio. As adversidades da floresta tropical dizimaram milhares de trabalhadores, de diversas nacionalidades. A natureza, até então, se mostrava insuperável.

O Tratado de Petrópolis, firmado entre Brasil e Bolívia em 1903, envolvia, entre outras coisas, a obrigatoriedade de construir a ferrovia pelo governo brasileiro. Em 1905, o empresário brasileiro Joaquim Catrambi vence a concorrência para a construção da EFMM. Mas foi o empresário norte-americano Percival Farquhar que, em 1907, após adquirir o contrato de concessão de Catrambi, iniciou a construção definitiva da ferrovia. Contando com 364 km de extensão, foi construída entre Porto Velho e Guajará-Mirim, duas cidades criadas pela EFMM. No dia 1º de agosto de 1912 é inaugurada a ferrovia, tendo como principal objetivo transportar a borracha boliviana e brasileira aos mercados internacionais. A Bolívia, portanto, passou a ter acesso ao Atlântico.

Uma série de acontecimentos nacionais e internacionais já indicavam, antes mesmo de sua inauguração, que Estrada de Ferro Madeira-Mamoré estava com os dias contados. Os fretes estabelecidos nos contratos de concessão estavam muito elevados, consumindo quase que por completo o lucro dos produtores de borracha. O sistema produtivo da borracha da região, que utilizava árvores nativas, não era páreo para o sistema racional e mais moderno empregado na Ásia. Em 1913, o Brasil perde a posição de maior exportador de borracha no mundo para os asiáticos.

A queda dos preços internacionais da borracha contribui, também, para a redução dos lucros dos produtores de borracha atendidos pela ferrovia. Motivados pela construção do Canal do Panamá, inaugurado em 1914, Argentina e Chile também constroem ferrovias em direção ao Pacífico, oferecendo outras alternativas à Bolívia de acesso ao Atlântico. O governo brasileiro também não soube tratar das principais questões e problemas em que a ferrovia estava envolvida.

No período entre 1914 e 1931, a ferrovia acumulou sucessivos prejuízos, até que passou a ser administrada pelo governo brasileiro. A partir do encerramento das atividades em 1972, o acervo ferroviário começou a ser vendido como sucata para uma siderúrgica de Mogi das Cruzes (SP). A esperança de reativar a ferrovia surgiu com o seu tombamento, em 2005, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O livro A Ferrovia do Diabo, de Manoel Rodrigues Ferreira, apresenta outros detalhes desta ferrovia polêmica e repleta de ensinamentos.

Transportes e corrupção

Em 1997, Lafayette Prado publicou o livro Transportes e corrupção: um desafio à cidadania (Figura 1), relacionando uma série de problemas envolvendo a construção de infraestruturas de transportes nas modalidades rodoviária, ferroviária, portuária e aeroviária. As críticas apresentadas na publicação estão acompanhadas de diversas reportagens de jornais, mostrando o descaso no uso de recursos públicos, com projetos deficientes, construções precárias e operações geralmente deficitárias dos sistemas de transportes construídos.

Figura 1 – Capa do livro Transporte e corrupção

Os projetos da década de 1970 discutidos pelo autor envolvem a Rodovia Transamazônica, com extensão de 2.280 km entre Estreito (MA) e Humaitá (AM), a Rodovia Perimetral Norte, formada por dois trechos na região amazônica que contavam com 4.030 km de extensão, Ponte Rio-Niterói e Ferrovia do Aço. Já na década de 1980, o trabalho do autor relacionava a Ferrovia Norte-Sul, entre Açailândia (MA) e Anápolis (GO), Ferroeste e Ferronorte, além de outras obras envolvendo trens metropolitanos e infraestrutura aeroviária e dutoviária.

Para Lafayette Prado, a explicação para os desmandos e problemas verificados na construção das infraestruturas no país reside na constatação de que a estrutura do Estado está infiltrada pelo setor privado. Após 20 anos desta publicação, verifica-se que a situação atual não está muito diferente.

Em 2011, o resultado de uma série de investigações levou à demissão do Ministro dos Transportes, do diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e do presidente da estatal Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. Parte das irregularidades apresentadas refere-se à Ferrovia Norte-Sul, com início da construção em 1987, cuja história está rodeada de polêmicas. Há muitas dúvidas sobre a qualidade da infraestrutura desta ferrovia, dos trilhos importados da China e da maneira como as construtoras participaram das concorrências públicas para a sua construção.

A construção da Ferrovia Transnordestina, localizada na região Nordeste do país, está passando por muitas dificuldades também. As obras estão atrasadas há mais de 10 anos e as dificuldades parecem que não param de surgir. Em 2013, a Construtora Norberto Odebrecht rompeu o contrato e abandonou a construção da ferrovia.

No estado de São Paulo há, também, um longo processo de investigação em andamento que trata da formação de cartel em obras do Metro e CPTM, envolvendo construtoras e empresas fornecedoras de equipamentos ferroviários. A participação do BNDES no setor ferroviário também tem gerado muitas dúvidas, principalmente nas participações acionárias das concessionárias que muitas vezes são entendidas como uma forma de salvar as empresas ferroviárias deficitárias.

Uma realidade muito comum na construção das ferrovias brasileiras é o aumento do valor previsto inicialmente para a realização da obra. A falta de projetos mais detalhados ou a inexperiência dos profissionais envolvidos pode ser a explicação para isso.

Normalmente, o atraso nas obras de infraestrutura está relacionado a problemas de ordem técnica, econômica, jurídica ou política. O mais provável é que se trata de um conjunto complexo de todas estas variáveis, que prejudica a ampliação do sistema ferroviário brasileiro e a prestação de serviços de transportes de qualidade.

Sistemas de transportes e meio ambiente

A energia mais utilizada no mundo no século XX foi a proveniente do petróleo e seus derivados. Uma parte significativa desta energia foi consumida pelo setor de transportes, envolvendo, principalmente, a movimentação de cargas e passageiros através das rodovias.

Com relação ao transporte de cargas, já se conhece há muito tempo as opções mais interessantes em termos ambientais. A comparação entre as modalidades de transportes é realizada através da eficiência energética, ou seja, a quantidade de energia necessária para transportar uma determinada quantidade de carga. Quanto menos energia é utilizada para transportar uma tonelada de carga, mais eficiente é a opção de transporte escolhida e menor é a quantidade de gases emitidos.

A modalidade de transporte terrestre com maior eficiência energética é a que utiliza os rios, canais e lagos, conhecido como hidroviário. Esta opção possui alta capacidade de transporte de cargas, utilizando menos energia e, portanto, gerando menos poluição. Seu custo variável também é muito menor quando comparado com o de outras opções de transportes, já que consume menos combustível. É a opção preferida quando se trata de transportes de produtos de alto volume e baixo valor agregado, como as commodities agrícolas. Uma das desvantagens é que a sua utilização exige adequações na estrutura original dos rios, atualmente muito difíceis de ser realizadas por questões ambientais.

A utilização de ferrovias é a segunda opção mais interessante quando se trata de eficiência energética. Os trens transportam grande volume de cargas e tem um baixo consumo de combustível. As composições podem ser formadas por até 150 vagões, sendo que os modelos mais novos podem transportar até 100 toneladas de produtos cada. Duas ou três locomotivas podem ser necessárias para tracionar a composição, dependendo do trecho e da quantidade de carga envolvida. A maior vantagem das ferrovias é que ela pode ser construída com relativa facilidade, vencendo as irregularidades do terreno com a construção de aterros, cortes, túneis e viadutos. O ponto negativo é que sua construção é cara e pode levar vários anos para ser concluída.

A opção aérea é a mais poluidora de todas as disponíveis, pois consome grande quantidade de combustíveis. Sua utilização fica restrita, portanto, ao transporte de produtos de alto valor agregado. Um dos pontos fortes da modalidade aérea é a velocidade das viagens, muito superior às demais opções disponíveis.

Apesar das hidrovias e ferrovias serem as opções mais interessantes em termos de eficiência energética e emissão de gases, o país deu preferência para as rodovias para o transporte de cargas (Figura 1). Os caminhões possuem menor eficiência energética, mas a sua escolha considera outras características, como disponibilidade em praticamente todo o território nacional, transporte porta a porta, construção fácil e barata, acessível para qualquer cidadão e maior velocidade das viagens.

Figura 1 – Transporte de grãos na BR-163 no Pará

Passagens em nível

Antes das privatizações das ferrovias verificadas na década de 1990, o assunto passagens em nível estava praticamente esquecido e longe dos noticiários. No entanto, após a reativação das ferrovias brasileiras na década de 1990, os fluxos de composições se intensificaram e as interferências verificadas nos cruzamentos entre vias rodoviárias e ferroviárias aumentaram.

Atualmente, as passagens em nível se tornaram um grande problema para a operação do sistema ferroviário e para a manutenção da segurança nas cidades e áreas rurais cortadas pelos trens. Elas podem ser consideradas como um obstáculo para os fluxos dos trens, reduzindo a velocidade das composições e trazendo grande preocupação com relação à interrupção dos serviços de transportes. Para os cidadãos, a passagem de trens nos centros urbanos funciona como uma barreira, já que as composições, que podem alcançar quilômetros de extensão, paralisam os fluxos de veículos e pessoas várias vezes ao dia (Figura 1).

Figura 1 – Passagem em nível em São José do Rio Preto

As passagens em nível podem ser analisadas a partir de duas realidades muito diferentes. A primeira está relacionada à malha ferroviária antiga, que cruza, atualmente, regiões de grande densidade populacional. A segunda refere-se à malha nova, de construção recente, localizada em regiões do Cerrado com baixa densidade populacional.

Na malha ferroviária antiga, que foi concessionada a partir de 1996 e totaliza, aproximadamente, 29 mil km de linhas, as passagens em nível se multiplicaram principalmente devido à urbanização e ao crescimento das cidades. Segundo levantamento, o país conta com 12.289 passagens em nível, sendo que, destas, 2.659 são consideradas críticas pelas concessionárias do sistema ferroviário (fonte: ANTF). A sinalização nestas passagens em nível é precária ou inexistente, trazendo insegurança para todos os envolvidos.

A malha nova, que tem como objetivo principal atender as necessidades do agronegócio exportador, ainda possui baixo fluxo de trens. Suas passagens em nível são, portanto, recentes e ainda não estão causando acidentes. Localizada nos estados de Tocantins e Goiás, a malha nova é formada, principalmente, pela Ferrovia Norte-Sul.

Soluções rápidas e baratas para minimizar a interferência entre ferrovia e cidades envolvem a construção de equipamentos públicos, como viadutos, mergulhões e passarelas, e a vedação da faixa de domínio, que é a construção de barreiras físicas para isolar a via férrea das áreas urbanas.

Para situações mais críticas, é necessário construir os contornos ferroviários, como o de Araraquara, inaugurado em 2015. Outras cidades, como Joinville e São Paulo, também aguardam a construção de seus contornos ferroviários. No caso de São Paulo, o projeto do Contorno Ferroviário da Região Metropolitana de São Paulo, também conhecido como Ferroanel, é da década de 1960 e ainda não tem prazo para início da construção.

Apesar de mais de duas décadas das concessões ferroviárias, a situação das passagens em nível no país ainda é crítica e incerta. O processo de privatização do sistema ferroviário se preocupou muito mais com a operação ferroviária e desconsiderou que este sistema se relaciona com as cidades e áreas rurais de diversas maneiras. A solução das interferências ficou em segundo plano e, até os dias atuais, continuam gerando muitas polêmicas.