Algumas considerações sobre mobilidade urbana

As cidades estão em constante transformação, exigindo investimentos contínuos em sistemas que garantam a mobilidade das pessoas. Para que as relações humanas se efetivem, é importante que as cidades disponibilizem serviços capazes de vencer as distâncias com comodidade e tempos e custos aceitáveis.

Mas mobilidade urbana não se resume à construção de grandes sistemas de transportes, com tecnologias modernas e eficientes que exigem investimentos milionários. Há outras questões importantes que, muitas vezes, não são considerados adequadamente.

Primeiramente, as cidades devem disponibilizar caçadas em boas condições. Elas permitem que as pessoas caminhem, que é a opção mais utilizada no mundo quando o assunto é mobilidade. Além disso, sem calçadas adequadas não há como acessar outras opções de transportes, como ônibus e trens.

Outro ponto fundamental é a construção de conexões eficientes para interligar as diferentes modalidades de transportes. Essas conexões acontecem em locais específicos nas cidades, geralmente com grande movimentação de pessoas, e permitem que os usuários escolham as melhores opções para seus deslocamentos.

Uma referência nesse assunto é Viena, capital da Áustria, que construiu um dos sistemas de mobilidade urbana mais eficientes do mundo. São muito conhecidos pelos seus bondes (VLT – Veículos Leves sobre Trilhos) , que operam desde o século XIX, mas também pelos trens, ônibus, bicicletas, patinetes e carros. É um sistema que funciona de forma hierárquica e atende praticamente todas as regiões da cidade.

A estação de Praterstern, localizada no distrito de Leopoldstadt (Figura 1), ilustra muito bem a importância de ter boas conexões. Ela oferece diferentes meios de transportes, tais como bicicletas, ônibus, VLT e trens, além do piso estar no mesmo nível em toda área da estação, o que confere mais conforto e comodidade aos usuários.

Figura 1 – Estação de trem Praterstern, Leopoldstadt, Viena

Para que as cidades possam oferecer uma mobilidade urbana, a primeira providência é tratar das calçadas. É o início de qualquer intervenção. Sem calçadas adequadas não há como falar em mobilidade urbana.

No link abaixo há outros exemplos de cidades que tratam muito bem a questão da mobilidade urbana.

Amsterdam – Baises Baixos

https://www.flickr.com/photos/ferroviaesociedade/albums/72177720314833625/

Innsbruck – Áustria

https://www.flickr.com/photos/ferroviaesociedade/albums/72177720307521369/

Viena – Áustria

https://www.flickr.com/photos/ferroviaesociedade/albums/72177720307485795/

Ferrovia do diabo

A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) ficou conhecida como a Ferrovia do Diabo pelos grandes desafios e tragédias durante sua construção e operação. Localizada em Rondônia, sua história começa em meados do século XIX e poderia render filmes de diversos gêneros, tais como aventura, comédia, romance, drama e terror.

A construção da ferrovia está relacionada, principalmente, com a necessidade da Bolívia em acessar o Oceano Atlântico e as principais rotas comerciais para os EUA e Europa, já que o Canal do Panamá ainda não existia. Três opções em discussão possibilitavam o acesso dos bolivianos ao Atlântico: pelo oeste, saindo dos portos do Oceano Pacífico e passando pelo Estreito de Magalhães; pelo sul, passando pelo Paraguai e alcançando os portos da Argentina e Uruguai, na foz do rio Paraguai; pelo norte, utilizando os rios Madeira e Amazonas (Figura 1).

Figura 1 – Alternativas de comunicação da Bolívia com Estados Unidos e Europa

A saída pelo norte, utilizando os dois rios brasileiros, era a opção mais interessante. No entanto, as corredeiras do Madeira não permitiam uma navegação plena pelo rio, o que fazia das viagens um grande desafio. A primeira solução apresentada em meados do século XIX por empresas internacionais era canalizar o rio. O projeto não foi aprovado, pois a grande novidade à época em todo o mundo era a construção de ferrovias.

Na segunda metade do século XIX, algumas tentativas inglesas de construir a ferrovia fracassaram. O rio Madeira, utilizado para transportar os equipamentos e trabalhadores, e a floresta amazônica foram os grandes vilões da história da construção da ferrovia. A bravura das águas e cachoeiras afundou muitas embarcações e equipamentos se perderam no fundo do rio. As adversidades da floresta tropical dizimaram milhares de trabalhadores, de diversas nacionalidades. A natureza, até então, se mostrava insuperável.

O Tratado de Petrópolis, firmado entre Brasil e Bolívia em 1903, envolvia, entre outras coisas, a obrigatoriedade de construir a ferrovia pelo governo brasileiro. Em 1905, o empresário brasileiro Joaquim Catrambi vence a concorrência para a construção da EFMM. Mas foi o empresário norte-americano Percival Farquhar que, em 1907, após adquirir o contrato de concessão de Catrambi, iniciou a construção definitiva da ferrovia. Contando com 364 km de extensão, foi construída entre Porto Velho e Guajará-Mirim, duas cidades criadas pela EFMM. No dia 1º de agosto de 1912 é inaugurada a ferrovia, tendo como principal objetivo transportar a borracha boliviana e brasileira aos mercados internacionais. A Bolívia, portanto, passou a ter acesso ao Atlântico.

Uma série de acontecimentos nacionais e internacionais já indicavam, antes mesmo de sua inauguração, que Estrada de Ferro Madeira-Mamoré estava com os dias contados. Os fretes estabelecidos nos contratos de concessão estavam muito elevados, consumindo quase que por completo o lucro dos produtores de borracha. O sistema produtivo da borracha da região, que utilizava árvores nativas, não era páreo para o sistema racional e mais moderno empregado na Ásia. Em 1913, o Brasil perde a posição de maior exportador de borracha no mundo para os asiáticos.

A queda dos preços internacionais da borracha contribui, também, para a redução dos lucros dos produtores de borracha atendidos pela ferrovia. Motivados pela construção do Canal do Panamá, inaugurado em 1914, Argentina e Chile também constroem ferrovias em direção ao Pacífico, oferecendo outras alternativas à Bolívia de acesso ao Atlântico. O governo brasileiro também não soube tratar das principais questões e problemas em que a ferrovia estava envolvida.

No período entre 1914 e 1931, a ferrovia acumulou sucessivos prejuízos, até que passou a ser administrada pelo governo brasileiro. A partir do encerramento das atividades em 1972, o acervo ferroviário começou a ser vendido como sucata para uma siderúrgica de Mogi das Cruzes (SP). A esperança de reativar a ferrovia surgiu com o seu tombamento, em 2005, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O livro A Ferrovia do Diabo, de Manoel Rodrigues Ferreira, apresenta outros detalhes desta ferrovia polêmica e repleta de ensinamentos.

Transportes e corrupção

Em 1997, Lafayette Prado publicou o livro Transportes e corrupção: um desafio à cidadania (Figura 1), relacionando uma série de problemas envolvendo a construção de infraestruturas de transportes nas modalidades rodoviária, ferroviária, portuária e aeroviária. As críticas apresentadas na publicação estão acompanhadas de diversas reportagens de jornais, mostrando o descaso no uso de recursos públicos, com projetos deficientes, construções precárias e operações geralmente deficitárias dos sistemas de transportes construídos.

Figura 1 – Capa do livro Transporte e corrupção

Os projetos da década de 1970 discutidos pelo autor envolvem a Rodovia Transamazônica, com extensão de 2.280 km entre Estreito (MA) e Humaitá (AM), a Rodovia Perimetral Norte, formada por dois trechos na região amazônica que contavam com 4.030 km de extensão, Ponte Rio-Niterói e Ferrovia do Aço. Já na década de 1980, o trabalho do autor relacionava a Ferrovia Norte-Sul, entre Açailândia (MA) e Anápolis (GO), Ferroeste e Ferronorte, além de outras obras envolvendo trens metropolitanos e infraestrutura aeroviária e dutoviária.

Para Lafayette Prado, a explicação para os desmandos e problemas verificados na construção das infraestruturas no país reside na constatação de que a estrutura do Estado está infiltrada pelo setor privado. Após 20 anos desta publicação, verifica-se que a situação atual não está muito diferente.

Em 2011, o resultado de uma série de investigações levou à demissão do Ministro dos Transportes, do diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e do presidente da estatal Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. Parte das irregularidades apresentadas refere-se à Ferrovia Norte-Sul, com início da construção em 1987, cuja história está rodeada de polêmicas. Há muitas dúvidas sobre a qualidade da infraestrutura desta ferrovia, dos trilhos importados da China e da maneira como as construtoras participaram das concorrências públicas para a sua construção.

A construção da Ferrovia Transnordestina, localizada na região Nordeste do país, está passando por muitas dificuldades também. As obras estão atrasadas há mais de 10 anos e as dificuldades parecem que não param de surgir. Em 2013, a Construtora Norberto Odebrecht rompeu o contrato e abandonou a construção da ferrovia.

No estado de São Paulo há, também, um longo processo de investigação em andamento que trata da formação de cartel em obras do Metro e CPTM, envolvendo construtoras e empresas fornecedoras de equipamentos ferroviários. A participação do BNDES no setor ferroviário também tem gerado muitas dúvidas, principalmente nas participações acionárias das concessionárias que muitas vezes são entendidas como uma forma de salvar as empresas ferroviárias deficitárias.

Uma realidade muito comum na construção das ferrovias brasileiras é o aumento do valor previsto inicialmente para a realização da obra. A falta de projetos mais detalhados ou a inexperiência dos profissionais envolvidos pode ser a explicação para isso.

Normalmente, o atraso nas obras de infraestrutura está relacionado a problemas de ordem técnica, econômica, jurídica ou política. O mais provável é que se trata de um conjunto complexo de todas estas variáveis, que prejudica a ampliação do sistema ferroviário brasileiro e a prestação de serviços de transportes de qualidade.

Sistemas de transportes e meio ambiente

A energia mais utilizada no mundo no século XX foi a proveniente do petróleo e seus derivados. Uma parte significativa desta energia foi consumida pelo setor de transportes, envolvendo, principalmente, a movimentação de cargas e passageiros através das rodovias.

Com relação ao transporte de cargas, já se conhece há muito tempo as opções mais interessantes em termos ambientais. A comparação entre as modalidades de transportes é realizada através da eficiência energética, ou seja, a quantidade de energia necessária para transportar uma determinada quantidade de carga. Quanto menos energia é utilizada para transportar uma tonelada de carga, mais eficiente é a opção de transporte escolhida e menor é a quantidade de gases emitidos.

A modalidade de transporte terrestre com maior eficiência energética é a que utiliza os rios, canais e lagos, conhecido como hidroviário. Esta opção possui alta capacidade de transporte de cargas, utilizando menos energia e, portanto, gerando menos poluição. Seu custo variável também é muito menor quando comparado com o de outras opções de transportes, já que consume menos combustível. É a opção preferida quando se trata de transportes de produtos de alto volume e baixo valor agregado, como as commodities agrícolas. Uma das desvantagens é que a sua utilização exige adequações na estrutura original dos rios, atualmente muito difíceis de ser realizadas por questões ambientais.

A utilização de ferrovias é a segunda opção mais interessante quando se trata de eficiência energética. Os trens transportam grande volume de cargas e tem um baixo consumo de combustível. As composições podem ser formadas por até 150 vagões, sendo que os modelos mais novos podem transportar até 100 toneladas de produtos cada. Duas ou três locomotivas podem ser necessárias para tracionar a composição, dependendo do trecho e da quantidade de carga envolvida. A maior vantagem das ferrovias é que ela pode ser construída com relativa facilidade, vencendo as irregularidades do terreno com a construção de aterros, cortes, túneis e viadutos. O ponto negativo é que sua construção é cara e pode levar vários anos para ser concluída.

A opção aérea é a mais poluidora de todas as disponíveis, pois consome grande quantidade de combustíveis. Sua utilização fica restrita, portanto, ao transporte de produtos de alto valor agregado. Um dos pontos fortes da modalidade aérea é a velocidade das viagens, muito superior às demais opções disponíveis.

Apesar das hidrovias e ferrovias serem as opções mais interessantes em termos de eficiência energética e emissão de gases, o país deu preferência para as rodovias para o transporte de cargas (Figura 1). Os caminhões possuem menor eficiência energética, mas a sua escolha considera outras características, como disponibilidade em praticamente todo o território nacional, transporte porta a porta, construção fácil e barata, acessível para qualquer cidadão e maior velocidade das viagens.

Figura 1 – Transporte de grãos na BR-163 no Pará

Passagens em nível

Antes das privatizações das ferrovias verificadas na década de 1990, o assunto passagens em nível estava praticamente esquecido e longe dos noticiários. No entanto, após a reativação das ferrovias brasileiras na década de 1990, os fluxos de composições se intensificaram e as interferências verificadas nos cruzamentos entre vias rodoviárias e ferroviárias aumentaram.

Atualmente, as passagens em nível se tornaram um grande problema para a operação do sistema ferroviário e para a manutenção da segurança nas cidades e áreas rurais cortadas pelos trens. Elas podem ser consideradas como um obstáculo para os fluxos dos trens, reduzindo a velocidade das composições e trazendo grande preocupação com relação à interrupção dos serviços de transportes. Para os cidadãos, a passagem de trens nos centros urbanos funciona como uma barreira, já que as composições, que podem alcançar quilômetros de extensão, paralisam os fluxos de veículos e pessoas várias vezes ao dia (Figura 1).

Figura 1 – Passagem em nível em São José do Rio Preto

As passagens em nível podem ser analisadas a partir de duas realidades muito diferentes. A primeira está relacionada à malha ferroviária antiga, que cruza, atualmente, regiões de grande densidade populacional. A segunda refere-se à malha nova, de construção recente, localizada em regiões do Cerrado com baixa densidade populacional.

Na malha ferroviária antiga, que foi concessionada a partir de 1996 e totaliza, aproximadamente, 29 mil km de linhas, as passagens em nível se multiplicaram principalmente devido à urbanização e ao crescimento das cidades. Segundo levantamento, o país conta com 12.289 passagens em nível, sendo que, destas, 2.659 são consideradas críticas pelas concessionárias do sistema ferroviário (fonte: ANTF). A sinalização nestas passagens em nível é precária ou inexistente, trazendo insegurança para todos os envolvidos.

A malha nova, que tem como objetivo principal atender as necessidades do agronegócio exportador, ainda possui baixo fluxo de trens. Suas passagens em nível são, portanto, recentes e ainda não estão causando acidentes. Localizada nos estados de Tocantins e Goiás, a malha nova é formada, principalmente, pela Ferrovia Norte-Sul.

Soluções rápidas e baratas para minimizar a interferência entre ferrovia e cidades envolvem a construção de equipamentos públicos, como viadutos, mergulhões e passarelas, e a vedação da faixa de domínio, que é a construção de barreiras físicas para isolar a via férrea das áreas urbanas.

Para situações mais críticas, é necessário construir os contornos ferroviários, como o de Araraquara, inaugurado em 2015. Outras cidades, como Joinville e São Paulo, também aguardam a construção de seus contornos ferroviários. No caso de São Paulo, o projeto do Contorno Ferroviário da Região Metropolitana de São Paulo, também conhecido como Ferroanel, é da década de 1960 e ainda não tem prazo para início da construção.

Apesar de mais de duas décadas das concessões ferroviárias, a situação das passagens em nível no país ainda é crítica e incerta. O processo de privatização do sistema ferroviário se preocupou muito mais com a operação ferroviária e desconsiderou que este sistema se relaciona com as cidades e áreas rurais de diversas maneiras. A solução das interferências ficou em segundo plano e, até os dias atuais, continuam gerando muitas polêmicas.

Ferrovias na África

A história das ferrovias brasileiras não pode estar desconectada de diversos acontecimentos verificados no mundo a partir do século XIX. Para entendê-la, é necessário buscar subsídios históricos do período colonial, da revolução industrial, do capitalismo e do processo de financeirização global verificado recentemente. As respostas para muitas perguntas sobre as ferrovias do país podem ser encontradas, portanto, na história mundial.

É muito comum comparar a situação das ferrovias existentes nos diferentes países, usando, geralmente, as americanas como referência de sucesso. As ferrovias brasileiras, no entanto, são muito mais parecidas com as africanas do que com as americanas e europeias. Olhando um pouco mais para a África é possível entender o passado e o futuro do sistema ferroviário nacional.

O continente africano conta, atualmente, com 90 mil km de linhas, aproximadamente, sendo que 22% está localizada na África do Sul (Figura 1). A história das ferrovias na África é muito parecida com a de outros países no mundo e pode ser dividida em três momentos distintos: desenvolvimento, declínio e reativação.

Figura 1 – Mapa das ferrovias da África

No período de desenvolvimento, as ferrovias africanas foram construídas com objetivos muito parecidos com os verificados no Brasil. A introdução do transporte por trens em muitos países fazia parte do projeto colonial das metrópoles. A ferrovia era considerada um fator estratégico para a colonização. Para Henry Morton Stanley, um dos responsáveis pela ocupação da África Central em meados do século XIX, para colonizar era preciso transportar.

A vocação das empresas ferroviárias africanas estava muito relacionada ao transporte de produtos primários de baixo valor agregado e alto volume em direção aos portos exportadores. Alcançando os portos, os produtos seguiam para a Europa. No sentido contrário, produtos importados chegavam nos portos africanos e eram transportados por ferrovias para os principais locais de consumo na África.

Por serem ferrovias em grande parte independentes e monofuncionais, elas foram construídas com bitolas diferentes, o que representa, até os dias atuais, uma dificuldade na integração das malhas. Grande parte das linhas ferroviárias na África foi construída perpendicular ao litoral, demonstrando sua função extravertida.

No século XX, as ferrovias africanas também passaram a competir com as rodovias, opção de transporte muito mais flexível e de construção mais barata. O declínio das ferrovias africanas se deu, portanto, pela falta de carga e passageiros, pouca renovação do material rodante, estrutura das empresas ferroviárias deficientes, injunções políticas e corrupção. Todos estes problemas alimentaram, já no final do século XX, os movimentos de liberalização, sob influências de organismos internacionais, como Banco Mundial e FMI, que condicionaram os empréstimos a uma mudança estrutural nos países africanos. Já no período recente de reativação, as linhas ferroviárias mais rentáveis foram privatizadas, utilizando como preferência a modalidade de concessão.

Atualmente, instituições e empresas da China estão realizando grandes investimentos nas ferrovias africanas. A modernização dos sistemas é seletiva, priorizando os fluxos de produtos para exportação. Há, também, outros interesses envolvidos, como a venda de serviços, infraestrutura ferroviária e material rodante por parte de empresas chinesas. De uma forma geral, os países africanos, assim como o Brasil, continuam dependentes dos países demandantes de commodities agrícolas e minerais. Nesta lógica, as ferrovias passam a ser limitadas às necessidades externas, restringindo os demais serviços de transportes à modalidade rodoviária.

Referência : CHALÉARD, J.; CHANSON-JABEUR, C.; BÉRANGER, C. Le chemin de fer en Afrique. França: Karthala, 2006.

Museu dos Transportes da Carolina do Norte (EUA)

A preservação e divulgação da memória ferroviária são atividades fundamentais para auxiliar no desenvolvimento das ferrovias no presente. As ações realizadas no período atual precisam estar fundamentadas ou relacionadas a exemplos já realizados e aprovados no passado. A memória das ferrovias está presente na história de empresas ferroviárias, locomotivas a vapor, locomotivas diesel, vagões, estações ferroviárias, oficinas, viadutos e pontes, rotundas e tantas outras instalações relacionadas aos trens.

Os museus ferroviários desempenham importante papel nesta relação do passado com o presente das ferrovias. Para atender este objetivo, centenas de museus estão espalhados pelo mundo. Nos Estados Unidos da América, país que possui o sistema ferroviário mais amplo e importante do mundo, há mais de 100 museus distribuídos em praticamente todos os estados americanos. Um dos mais interessantes e importantes está localizado na cidade de Spencer, no estado da Carolina do Norte.

O Museu dos Transportes da Carolina do Norte (North Carolina Transportation Museum), inaugurado em 1977 e aberto ao público em 1983, está localizado nas antigas oficinas da empresa ferroviária Southern Railway Company. Estas oficinas, inauguradas em 1896, foram construídas em Spencer pois estavam num ponto estratégico entre Atlanta, capital da Geórgia, e Washington,  capital do país. O nome da cidade é uma homenagem ao primeiro presidente da empresa ferroviária, Samuel Spencer.

Na fase áurea das ferrovias americanas, início do século XX, as oficinas em Spencer chegaram a atender entre 75 e 100 locomotivas a vapor diariamente. Com a utilização de locomotivas a diesel, que exigiam menos manutenção, as locomotivas a vapor perderam espaço e as oficinas entraram em declínio. Em 1960, elas encerraram suas atividades definitivamente.

A criação do museu permitiu resgatar muitas histórias importantes sobre as ferrovias americanas e as oficinas de Spencer. Os visitantes podem voltar ao passado através de várias atividades realizadas na parte externa e nos diversos prédios existentes. Na pequena sala de cinema, os filmes contam a história da empresa ferroviária, das oficinas e da cidade. Os ambientes procuram representar como os trabalhadores desempenhavam suas funções, tanto nos escritórios como nas oficinas.

Os visitantes têm acesso a amplo material de transportes, grande parte formada por vagões de passageiros e carga, locomotivas a vapor (Figura 1) e diesel. O acervo conta com muitos vagões do século XIX, utilizados por importantes empresários e políticos, assim como carros do serviço postal e do exército. Muitos deles estão perfeitamente restaurados e em operação.

Figura 1 – Locomotiva do Museu dos Transportes da Carolina do Norte, Spencer (NC)

Na rotunda há diversas locomotivas e vagões em exposição ou em manutenção. Voluntários de diversas partes do mundo visitam o museu para trabalhar no restauro do acervo existente. É uma oportunidade única para estes amantes dos trens. Como todo ponto turístico nos EUA, o museu conta com uma loja para a venda de todos os tipos de lembranças, tais como brinquedos, roupas, canecas, chaveiros e tantos outros itens relacionados ao museu e às ferrovias.

O Museu dos Transportes da Carolina do Norte está em constante transformação, com novas instalações, serviços e atrações. É um ótimo exemplo a ser seguido.

Transporte ferroviário de passageiros nos Estados Unidos

O transporte de passageiros de longa distância nos Estados Unidos é realizado pela empresa Amtrak (National Railroad Passenger Corporation) (Figura 1). Atende 500 localidades em 46 estados americanos, além de algumas cidades canadenses. A operação ferroviária inclui mais de 300 trens e 35 mil km de linhas.

Figura 1 – Trem da Amtrak na estação de Raleigh, Carolina do Norte, EUA (2008)

Desde sua criação, em 1971, está apresentando resultados negativos em seus balanços. Os prejuízos constantes têm gerado muitas discussões entre os americanos sobre a necessidade ou não de privatizar a empresa. Não há consenso se os serviços de transportes, como o ferroviário de passageiros, devem ser considerados um negócio ou um serviço público. São posições completamente diferentes, que influenciam diretamente na qualidade dos serviços prestados.

Os defensores da privatização procuram utilizar a conhecida equação “estatal é ruim” e “privado é bom”. Para eles, a privatização traria melhor eficiência para o sistema, resultando em lucros e retorno sobre os investimentos da empresa ferroviária. Mas existe uma lógica de mercado que precisa ser considerada. A operação privada destes serviços passaria a priorizar rotas ferroviárias mais lucrativas e a eliminar as deficitárias.

A realidade tem demonstrado que os sistemas de transportes nos Estados Unidos estão sempre operando com o auxílio de algum subsídio público.  As tarifas provenientes dos serviços prestados não são suficientes para pagar os investimentos realizados na construção das infraestruturas de rodovias, ferrovias e aerovias. Portanto, a intervenção estatal é fundamental para a existência destes serviços.

Para os especialistas que defendem a não privatização, os benefícios oferecidos pela Amtrak dificilmente podem ser medidos pelos modelos de negócios usualmente utilizados. O valor dos serviços oferecidos vai muito além dos números e observações de um relatório contábil.

Além de transportar encomendas e passageiros, a Amtrak contribui com a sociedade americana através da economia de energia, redução de poluentes, independência quanto ao uso de combustíveis fósseis e segurança nacional, pois oferecem redundância em caso de outros sistemas de transportes falharem. Além disso, atendem regiões agrícolas dependentes das ferrovias, cujos serviços não podem ser interrompidos pois garantem a manutenção das atividades locais.

O país mais capitalista do mundo entende a importância de manter um sistema de transporte ferroviário de passageiros, mesmo que seja deficitário em suas operações. A Amtrak, que realizou no último ano 37 milhões de viagens, é um bom exemplo de um serviço público que prioriza o interesse da sociedade.

É através desta visão mais ampla que os sistemas de transportes deveriam ser analisados e considerados. A condução das políticas de transportes no Brasil deveria ser rediscutida, considerando outras opções e alternativas praticadas ao redor do mundo.

Ferrovias na América do Norte

O maior e mais importante sistema de transporte ferroviário existente no mundo está localizado na América do Norte. Com mais de 200 mil km de linhas, diversas empresas ferroviárias interligam os Estados Unidos da América, Canadá e México e oferecem uma gama de serviços de transportes que incluem passageiros e uma variedade muito grande de cargas.

A Amtrak (National Railroad Passenger Corporation), criada em 1971, é a empresa responsável pelo transporte de passageiros de curta e média distâncias nos Estados Unidos e parte do Canadá (Figura 1). Subsidiada pelo governo, está cumprindo seu papel social ao atender mais de 500 localidades em 46 estados americanos, além de algumas cidades canadenses. A operação ferroviária inclui mais de 300 trens e 35 mil km de linhas, grande parte delas compartilhada com os trilhos das ferrovias de cargas.

Figura 1 – Amtrak na estação de Raleigh, NC, EUA

Quanto ao transporte de cargas, a principal empresa, BNSF Railway, atende 28 estados localizados nas regiões central e oeste dos Estados Unidos. Opera em mais de 52 mil km de linhas, utilizando 8 mil locomotivas e 85 mil vagões de cargas. Transporta uma grande variedade de produtos e tem uma presença muito importante no transporte intermodal.

A segunda empresa mais importante é a Union Pacific Railroad, competidora direta da BNSF Railway, já que opera também das regiões central e oeste dos Estados Unidos. Possui aproximadamente 8.500 locomotivas e 95 mil vagões de cargas, realizando os serviços em 50 mil km de linhas.

A costa leste dos Estados Unidos é atendida por duas empresas ferroviárias importantes, a Norfolk Southern Railway (Figura 2) e CSX Transportation. A primeira realiza seus serviços em 34 mil km de linhas, utilizando mais de 4 mil locomotivas e 62 mil vagões de cargas. A segunda, 34 mil km de linhas, 3,5 mil locomotivas e 78 mil vagões de cargas.

Figura 2 – Norfolk Southern em pátio ferroviário de Raleigh, NC, EUA

A ligação ferroviária entre Canadá e Estados Unidos é realizada através das empresas Canadian National Railway e Canadian Pacific Railway. A operação destas duas companhias envolve um total de aproximadamente 52 mil km de linhas. Para o México, as cargas seguem pela Kansas City Southern Railway, ferrovia com 2.500 km de extensão, mil locomotivas e 20 mil vagões.

A principal característica das ferrovias da América do Norte é que elas funcionam como um sistema, pois interligam cidades, indústrias, regiões agrícolas e portos em grande parte do território norte americano. Além disso, oferecem uma variedade enorme de serviços com o uso de outras modalidades de transportes, tais como rodovias e hidrovias.

Para entender o sucesso destas ferrovias é importante considerar que elas não são formadas apenas por infraestruturas, trilhos, material rodante, cargas e pessoas. Seu sucesso está relacionado à existência de um ambiente normativo muito organizado, formado por instituições que extrapolam a regulação e operação dos serviços de transporte ferroviário e se debruçam sobre as necessidades da sociedade.

Nota: informações e dados referentes ao ano de 2018

Realidades muito diferentes

No início do século XIX, as ferrovias começaram a ganhar o mundo. Os trens promoveram transformações sociais em todos os países ou regiões em que foram construídos. Houve uma revolução no transporte terrestre, com um aumento extraordinário nas quantidades de cargas e pessoas transportadas. A expansão das linhas ferroviárias permitiu reduzir os tempos e os custos das viagens.

As ferrovias modificaram a configuração territorial de muitos países, como foi o caso dos Estados Unidos que, na segunda metade do século XIX, conseguiram integrar o país e transformar a atuação de muitas empresas de regional para nacional e depois para internacional. Graças às ferrovias, grandes potências, como os Estados Unidos da América, com 260 mil km de linhas, e a Rússia, com 30 mil, consolidaram a integração de seus territórios no final do século XIX. Nestes países, assim como em grande parte da Europa, quando o automóvel se impôs no início do século XX, já estava terminada a era da construção ferroviária, ou seja, já existia uma rede coesa de estradas de ferro.

Figura 1 – Locomotiva da Norfolk Southern em Raleigh, NC, EUA

Os países que construíram ferrovias o fizeram para atender necessidades muito particulares. É possível, no entanto, classificá-los pela maneira como as ferrovias foram construídas. Alguns países construíram seus sistemas ferroviários para promover a integração do mercado interno, ligando as principais cidades, assim como os principais portos. Outros criaram os sistemas para ligar regiões agrícolas e minerais aos portos, organizando seus territórios para atender os mercados externos. São duas realidades muito diferentes, o que dificulta comparar os sistemas ferroviários existentes.

O Brasil, assim como em alguns países da África, está inserido no segundo grupo. O sistema foi construído para realizar o transporte e exportação de produtos primários, como o café. Desta forma, as linhas principais ligavam regiões de produção agrícola aos principais portos exportadores. No final do século XIX, o país contava com 12 mil km de linhas, grande parte delas perpendiculares ao litoral e formando sistemas isolados. A partir de 1990, as ferrovias foram privatizadas para atender, novamente, a exportação, mas agora compreendendo produtos como minério e soja.

Os EUA, por sua vez, criaram um sistema no século XIX que foi fundamental para desenvolver o mercado interno. Isso foi possível pela criação de uma complexa rede de linhas ferroviárias que ligavam a costa leste à oeste. As principais cidades, regiões industriais e portos estavam conectados a este amplo sistema ferroviário, que chegou a ter mais de 400 mil km de linhas no início do século XX. Atualmente, as ferrovias americanas possuem, aproximadamente, 224 mil km de linhas, cujas cargas são transportadas por 7 empresas principais, conhecidas como Classe 1, além de 21 regionais e 510 locais. Os serviços de transportes envolvem uma variedade de produtos, tais como agrícolas e florestais, materiais de construção, veículos, produtos químicos, carvão, etanol e óleo combustível.