Matriz de transportes no Brasil

Os investimentos propostos nas últimas duas décadas em infraestruturas de transportes indicam para o aumento da participação de ferrovias e hidrovias no transporte de cargas e uma redução na utilização das rodovias. A retomada das ferrovias verificada a partir da década de 1990 está contribuindo para a reorientação da matriz de transportes, que tem a rodovia como a modalidade mais utilizada.

Uma das justificativas para a mudança desta matriz está relacionada à necessidade de utilizar opções de transportes mais eficientes e competitivas, principalmente quanto à redução dos custos envolvidos. É praticamente um consenso a ideia de que a matriz de transportes brasileira está desbalanceada, principalmente quando comparada com a de outros países de dimensões continentais semelhantes, como os Estados Unidos da América e a Rússia.

Mas as discussões sobre a matriz de transportes são limitadas a determinados interesses, principalmente àqueles que priorizam a inserção competitiva de produtos de grande volume e baixo valor agregado nos mercados internacionais. É fundamental, no entanto, analisar o assunto de uma forma mais ampla, destacando outras questões relevantes e fundamentais.

Primeiramente, é importante entender o que a matriz de transportes representa. Ela é o resultado de embates, confrontos e consensos entre todos os interessados na movimentação de cargas e pessoas no país. As modalidades de transportes atendem uma variedade muito ampla de interesses, portanto é prioridade de todos. Em segundo lugar, não se deve pensar na readequação da matriz de transportes sem considerar as diversas implicações que esta mudança pode acarretar nos outros serviços de transportes disponíveis.

No século XIX, por exemplo, a modalidade de transporte hidroviário foi praticamente esquecida no país quando as ferrovias começaram a ser introduzidas. Para os usuários que eram dependentes do transporte fluvial, esta mudança foi muito prejudicial. Em meados do século XX, os usuários de ferrovias também foram prejudicados com a introdução das rodovias. Diversas cidades, dependentes dos trens, praticamente sumiram do mapa com o início do transporte rodoviário.

A mudança desta matriz implica, também, na alteração de prioridades, interesses e orçamentos, promovendo modalidades de transportes que não são necessariamente utilizadas pela sociedade de uma forma geral. Uma possível priorização ou migração dos orçamentos relacionados às infraestruturas de transportes para as ferrovias e hidrovias, que são amplamente funcionais aos interesses de grandes grupos econômicos e empresariais, pode prejudicar a melhoria da malha rodoviária atual, cuja expansão verifica-se ainda incompleta no território brasileiro.

A matriz de transportes deve ser mais equilibrada no sentido de atender o máximo possível de interesses. Apesar disso, praticamente todos os planos e políticas de transportes no país buscam a readequação desta matriz seguindo o mesmo discurso de modernização do território que privilegia apenas alguns agentes, setores econômicos e regiões.

MRS Logística em Bueno de Andrada, Araraquara, SP

Ferrovia e desenvolvimento

A contribuição dos sistemas de transportes para o desenvolvimento econômico e social de uma região ou país parece ser uma certeza consagrada para grande parte dos estudiosos e formuladores de políticas públicas. É uma questão que tem gerado muitas dúvidas, já que a realidade constatada em várias partes do país é muito diferente das promessas.

Esta relação é utilizada há muito tempo em diversos países, tendo como referência os trabalhos realizados pelo Conde de Saint Simon e seus discípulos no século XVIII que trataram do planejamento do território da França. Para este estudioso, as redes de transportes irrigariam e trariam vida para todo o território francês, beneficiando toda a sociedade. Para Saint Simon, o território funcionaria como um organismo e as redes de transportes como artérias.

A aplicação desse conceito, no entanto, não pode ser verificada na prática. As funções de um organismo são definidas a partir de um programa muito bem estabelecido. Quando umas das partes do organismo faz uma solicitação, os fluxos são acionados automaticamente. Nos sistemas de transportes, as funções que controlam os fluxos não são acionadas automaticamente, mas de acordo com leis e regras definidas pela sociedade, expressando desejos, planos e necessidades muito particulares.

Há muitos exemplos que demonstram que não existe esta relação direta entre sistemas de transportes e desenvolvimento. O primeiro deles pode ser representado pela Estrada de Ferro Carajás (EFC). É uma das ferrovias mais produtivas, modernas e eficientes do mundo, mas atravessa dois estados com os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, Maranhão e Pará. É uma ferrovia que, na escala nacional e global, contribui para a atividade exportadora de commodities minerais e agrícolas. Porém, na escala local, entre Parauapebas (PA) e São Luís (MA), há um grande vazio em que impera a pobreza e a miséria.

O segundo exemplo é o oposto do primeiro. O estado de São Paulo, que possui os melhores índices econômicos e sociais do país, não é um grande usuário de ferrovias. Um volume expressivo de cargas ferroviárias que atravessam o estado são de grãos originados na região Centro-Oeste.

Apesar da realidade mostrar o contrário, esta relação ainda é amplamente utilizada nos meios acadêmicos, empresarial, governamental e de comunicação. A construção da Ferrovia Norte-Sul, realizada recentemente no estado de Tocantins, é um bom exemplo. Ao longo da BR-226, entre o sul e o norte do estado, diversas placas anunciavam que a ferrovia estava chegando ao estado. A mensagem, realizada pelo Governo Federal e Ministério dos Transporte, dizia “O desenvolvimento chega de trem ao Tocantins”.

Muitos outros exemplos demonstram que a relação apresentada não existe de forma automática e direta, já que desenvolvimento é o resultado de questões muito mais amplas e complexas. Este assunto, no entanto, é muito utilizado nos discursos para realizar a mudança da matriz de transportes do país.

Novas ferrovias, novos discursos

A privatização das ferrovias brasileiras, iniciada em 1996, representou uma ruptura organizacional e institucional de um modelo que foi construído na segunda metade do século XX. A partir de então, diversas ações e programas foram realizados para desconstruir e reconstruir uma nova imagem das ferrovias no país, formada por conceitos, princípios e ideias. Os discursos e planos ferroviários passaram a incorporar estas novas referências, mas sem grandes questionamentos.

Apesar das dificuldades da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), sua liquidação acabou com uma cultura ferroviária construída durante meio século. A visão de conjunto que esta empresa possuía foi substituída por outra que resultou no uso seletivo das ferrovias e consequente desativação de diversos trechos verificados atualmente. Os envolvidos na condução das concessões ferroviárias seguiram pelos caminhos mais fáceis, subdividiram e enfraqueceram o sistema unificado proporcionado pela RFFSA.

O encerramento da era RFFSA também representou o fim das prioridades para o transporte de carga geral e de passageiros entre cidades. Novas ferrovias são construídas atualmente e estas duas opções de transportes são totalmente desconsideradas. Apesar das concessões ferroviárias da estatal Valec S.A. preverem transporte de cargas e passageiros, ela realiza subconcessões para a iniciativa privada apenas do serviço de cargas.

Nas últimas duas décadas criou-se um confronto entre a gestão pública e privada das ferrovias. De forma injusta, os governos, na segunda metade do século XX, passaram a ser os culpados pelo fracasso e decadência das ferrovias. O que a história nos mostra, no entanto, é que as dificuldades enfrentadas pela RFFSA estão relacionadas, principalmente, à falta de cargas. Desta mesma forma, o sucesso e o investimento verificados no sistema ferroviário atual estão relacionados à demanda de carga existente, principalmente de minério e soja destinados à China.

Grande parte do discurso para justificar os investimentos em novas ferrovias está relacionado à necessidade de mudança da matriz de transportes. Este é outro assunto com discussões simplistas, que ficam restritas aos modelos econométricos. A matriz de transportes existente é o resultado de diversos interesses, que não inclui apenas os usuários de ferrovias.

Outro debate muito comum recriado neste período pós privatização é a relação entre ferrovia e desenvolvimento. Diversos planos de investimentos em transporte e logística consideram esta relação. Mas, na prática, a construção de ferrovias não necessariamente resulta em desenvolvimento do país. Esta questão é muito mais complexa, formado por uma conjugação de fatores que extrapolam os sistemas de transportes. O que existe de concreto é a relação positiva entre as ferrovias e seus poucos usuários. Estes são os verdadeiros beneficiados pelo novo sistema ferroviário.

Segurança institucional

A crise do setor aéreo verificada em 2006 trouxe grandes transtornos para a sociedade brasileira. A prestação de serviços de transporte de passageiros ficou comprometida, gerando insegurança para todos. Uma das providências governamentais à época foi retomar as discussões sobre o trem-bala entre Rio de Janeiro e São Paulo. O projeto foi retirado da gaveta, mas, em pouco tempo, ficou esquecido novamente.

Em 2018, a greve dos caminhoneiros paralisou o fluxo de produtos em praticamente todo o território nacional. Mais uma vez, um acontecimento envolvendo o setor de transportes trouxe grande insegurança para os brasileiros, já que produtos básicos e importantes começaram a faltar. O acontecido colocou o debate das ferrovias novamente em evidência. Nestes dois casos, ficou evidente, pelas manifestações populares e de especialistas, que a dependência de uma única opção de transporte é um grande problema e precisa de um debate mais amplo.

Os dois exemplos são extremos e mostram que existe uma grande deficiência dos planejamentos realizados no país na questão transportes, pois não consideram como uma das prioridades a segurança das instituições. Pessoas e empresas são dependentes de sistemas de transportes, cujos serviços não podem ser interrompidos. Quando o transporte é suspenso, gera grandes transtornos, como a paralisia de empresas e instituições e, em alguns casos, a morte de pessoas.

Mas nem sempre o planejamento foi realizado dessa forma. Em meados do século XX, o assunto segurança nacional estava muito presente em todos os planos governamentais no tocante aos transportes. Algumas publicações especializadas na década de 1950 consideravam que os sistemas de transportes precisavam atender exigências socioeconômicas e político-militares, assim como tratar de questões como integração e unidade territorial, soberania nacional e aplicação do poder militar em áreas ameaçadas pelas pressões exteriores. A segurança nacional era tratada em seu sentido mais amplo, de segurança das instituições, e não apenas restrito ao conceito de defesa nacional. A segurança, aliás, era condição importantíssima para assegurar o desenvolvimento econômico do país.

Nos EUA, a decisão de não desativar ou mesmo privatizar o transporte ferroviário de passageiros, que resultou na criação da estatal Amtrak na década de 1970, foi acertada, pois há muitas regiões e cidades do país que dependem dos trens para seu funcionamento. Para a sociedade norte americana, a preocupação com a segurança nacional significa construir sistemas de transportes redundantes, ou seja, ter mais de uma opção de transporte de pessoas e cargas entre origens e destinos idênticos. Enquanto isso, no Brasil, as ferrovias de passageiros foram desativadas na segunda metade do século XX, trazendo insegurança para muitas cidades dependentes dos trens.

Nos últimos anos, o sistema ferroviário nacional tem transportado volumes recordes, mas isso não significa que está promovendo a garantia das instituições. A falta de segurança ou de garantia de disponibilidade dos serviços de transportes no país atualmente é muito grande. Os investimentos estão priorizando a construção de sistemas ferroviários para atender necessidades muito restritas, envolvendo grandes grupos e setores econômicos voltados à exportação. O uso efetivo das ferrovias está limitado a um terço da malha total existente.

A segurança institucional pode ser conseguida através de uma organização territorial adequada que garanta a cidadãos e instituições o mínimo de alternativas para o transporte de produtos e pessoas. Na falta de uma opção, outra pode facilmente ser utilizada. Por enquanto, o país está enfrentando uma grande crise de insegurança por falta de alternativas de transportes.

Amtrak, Raleigh (NC), EUA

Futuro das ferrovias de cargas

Os benefícios das ferrovias ao redor do mundo são inegáveis. Há vários exemplos atuais de sucesso que podem ser relacionados, como os da América do Norte, para cargas, e Europa e Ásia, para passageiros. A diferença entre o sucesso e o fracasso dos diversos sistemas ferroviários existentes está muito relacionada à maneira como eles foram construídos e operados nos últimos 150 anos.

No Brasil, e diferentemente do verificado em vários países, as ferrovias foram construídas no século XIX para atender, principalmente, a exportação de produtos primários. Passageiros também eram transportados, mas não representavam os verdadeiros objetivos. Esta decisão do passado tem influenciado até os dias atuais os resultados operacionais e as contribuições sociais das ferrovias.

Mais recentemente, a partir da década de 1990, diversas decisões tomadas durante as privatizações das ferrovias brasileiras resultaram num sistema limitado em vários aspectos. A privatização foi estabelecida através de contratos de concessão que privilegiam mais a operação ferroviária e menos a prestação de serviços. Desta forma, o descontentamento de usuários e embarcadores é frequente no país.

O sistema ferroviário brasileiro é controlado atualmente por três empresas, que definem o que será transportado e quando o transporte será realizado. As empresas ferroviárias não estão organizadas como prestadoras de serviços de transportes, pois movimentam, em grande parte, seus próprios produtos. Além disso, produtos minerais e agrícolas monopolizam a capacidade de transporte do sistema ferroviário atual. Dificilmente outros produtos têm acesso aos benefícios oferecidos pelos trens.

O modelo de privatização escolhido resultou em outro absurdo, pois as malhas privatizadas a partir da década de 1990 encolheram. A expansão da oferta de serviços, que deveria ser o grande objetivo das privatizações, não aconteceu. Atualmente, apenas um terço da malha está sendo efetivamente utilizada. Os fluxos de cargas acontecem, majoritariamente, nos corredores de exportação. Trechos ferroviários fora destes corredores estão subutilizados ou inoperantes ou são devolvidos para a União.

A situação das novas ferrovias de bitola larga também é preocupante. A conclusão da Transordestina Logística S.A. é uma grande incógnita, assim como da Ferrovia de Integração Oeste-Leste.

Apesar das renovações dos contratos de concessão ferroviária que estão acontecendo no atual momento, há poucos indícios de que o país terá sua malha ferrovia ampliada e os serviços ampliados.

As ferrovias brasileiras não podem ser analisadas e entendidas apenas como uma infraestrutura formada por linhas e pontos de conexão destinadas ao transporte de cargas e passageiros. Estes sistemas se relacionam com outros, como o social, urbano, ambiental e econômico. É a partir desta abordagem mais ampla que devemos procurar entender o passado e o futuro das ferrovias brasileiras.

Sem alternativas

Em 2006, o país passou por uma grave crise no setor aéreo. Foi um caos, paralisando diversas atividades e negócios e colocando em evidência o papel e a responsabilidade de todos os agentes públicos e privados envolvidos. Para salvar este momento histórico negativo, que ficou conhecido como apagão aéreo, o governo retirou na gaveta o projeto do Trem de Alta Velocidade (TAV).

Através deste acontecimento, o trem passou a ser a melhor alternativa para todos os problemas relacionados aos transportes no país, principalmente para atender os fluxos de pessoas no eixo Rio-São Paulo. Depois que a situação de desespero se normalizou, o projeto do TAV voltou para a gaveta.

Com a crise dos caminhoneiros em 2018, que paralisou o país em praticamente todas as coordenadas do território nacional, a discussão sobre o papel das ferrovias brasileiras voltou. Os discursos destacaram que o país é muito dependente dos caminhões, que a matriz dos transportes está desbalanceada em favor das rodovias e que tudo isso começou com o presidente Juscelino Kubitschek. São afirmações simplificadas, que limitam as discussões a questões superficiais e não esclarecem como o setor de transportes funciona realmente no país.

Primeiramente, o transporte é uma atividade muito estratégica para as empresas, principalmente para os grandes grupos econômicos que precisam movimentar pelo território brasileiro grandes quantidades de produtos de baixo valor agregado, como minério e soja. Os custos logísticos de alguns grupos podem represenar entre 1 bilhão e 2 bilhões de reais ao ano e qualquer sistema de transporte mais eficiente e econômico será disputado com toda as armas disponíveis.

Outro ponto que merece ser colocado na mesa de discussões está relacionado à maneira como o planejamento dos sistemas de transportes é realizado pelos governos brasileiros. Geralmente visam atender necessidades imediatas, pontuais e de setores representativos, sem um pensamento de conjunto e de longo prazo.

O Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT), lançado em 2007 como um plano de Estado, é um bom exemplo. Os estudos foram elaborados para um horizonte de 16 anos, considerado de médio e longo prazos. Para as ferrovias, que possuem contratos de concessão de 30 ou 60 anos, o horizonte considerado no PNLT é de curto prazo. Para fazer um planejamento sério e consistente, seria necessário considerar o que o país necessita para os próximos 50 e 100 anos.

A maneira como as ferrovias estão sendo organizadas e utilizadas também precisam ser consideradas. Elas foram reativadas no país no final do século XX para atender a exportação de commodities. Desta forma, os trens dificilmente poderão transportar cargas rodoviárias, pois as origens e destinos das rotas são muito diferentes. Enquanto os trens interligam regiões agrícolas e minerais aos portos, as principais rodovias conectam as grandes metrópoles. É importante considerar, também, que o sistema ferroviário nacional opera sob regime de monopólio, controlado por três empresas, com grandes barreiras para entradas de outros usuários e produtos.

Para um país imediatista, com baixa capacidade de investimento, sem planejamento de conjunto e de médio e longo prazos, as rodovias são a melhor opção. Atendem todos os usuários e tipos de veículos e em praticamente todo o território nacional. A ferrovia, de uso limitado e com investimentos a passos lentos, nunca será uma alternativa para solucionar a falta de caminhões.

Limitações ferroviárias

O processo de concessão das ferrovias brasileiras teve início em 1996 com a privatização do sistema até então sob controle estatal.  Os resultados da operação das ferrovias pela iniciativa privada estão muito bem documentados e seguem as obrigações estabelecidas nos contratos de concessão.

Apesar das notícias positivas divulgadas amplamente pela mídia especializada do setor ferroviário, outras questões resultantes deste processo precisam ser destacadas. Nas últimas duas décadas, o trem tem atropelado vários interesses e o resultado é uma grande lista de excluídos e inimigos das ferrovias. Vejamos!

Quanto ao serviço de transporte ferroviário, há um grande descontentamento tanto de usuários quanto de potenciais usuários. Logo após as privatizações, havia uma grande expectativa de que as ferrovias seriam usadas por muitas empresas ou estariam disponíveis para o transporte de uma variedade maior de produtos. No entanto, o resultado é que as cargas transportadas atualmente são, em grande parte, das próprias empresas que controlam as concessionárias. A preferência é para o transporte de commodities agrícolas e minerais. Além disso, há uma barreira significativa para a entrada de novos usuários e produtos no setor ferroviário.

Por não contar com índices que meçam e direcionem a qualidade dos serviços de transportes, as concessões contabilizam uma grande quantidade de usuários insatisfeitos. Quebra de contratos, cujas multas já fazem parte das operações, vagões perdidos, contaminação de produtos, fretes ferroviários balizados pelos fretes rodoviários, são algumas das reclamações. Uma parte dessas reclamações estava relacionada à América Latina Logística (ALL), concessionária anterior à Rumo Logística.

As práticas operacionais e comerciais das concessionárias também desagradam grande parte dos antigos ferroviários, os mesmos que ajudaram a construir as ferrovias nos últimos 150 anos. Há muitas críticas relacionadas à qualidade da manutenção das vias e desativação de trechos considerados não operacionais pelas concessionárias. Restou para estes ferroviários olhar o trem passar ou participar de atividades de preservação da memória ferroviária.

O processo de concessão não considerou, e nem resolveu até o momento, a questão dos milhares de passagens em nível existentes em áreas urbanas e rurais. O risco para os cidadãos é grande e todos os anos acidentes fatais acontecem em algumas cidades do país. Falta uma definição mais clara sobre os verdadeiros responsáveis pela sinalização destas passagens. Nas novas ferrovias, as passagens em nível ainda não viraram notícia, pois o tráfego de trens ainda é pequeno nestes trechos.

As estações ferroviárias abandonadas e sem utilização espalhadas pelo país causam grandes transtornos para as municipalidades. Patrimônio de grande valor no passado, hoje as estações não passam de um passivo degradado e abandonado. Até o presente momento não há planos específicos para utilizar a memória ferroviária em favor do desenvolvimento do setor ferroviário no presente.

É preciso considerar que a ferrovia não é um sistema isolado, mas uma instância social em que vários agentes participam direta e indiretamente de seus benefícios e problemas. De uma forma geral, o processo de privatização transferiu os benefícios das ferrovias para alguns grupos econômicos e os problemas para toda a sociedade.

Contribuições ferroviárias do BNDES

Na década de 1990, o país passou por um grande processo de privatização, considerado o maior do mundo. Diversas empresas públicas foram incluídas no Programa Nacional de Desestatização e, posteriormente, transferidas para a iniciativa privada através dos leilões de privatização. O objetivo principal deste programa, segundo os discursos à época, era reduzir a participação do Estado em diversos serviços considerados não prioritárias e aumentar a presença de empresas privadas, consideradas mais eficientes.

Apesar disso, após duas décadas das primeiras concessões ferroviárias, verifica-se que a participação de instituições públicas ainda é significativa no setor ferroviário. O BNDES tem participado decisivamente na definição e na efetivação de várias políticas públicas, levando em consideração a necessidade do aumento da eficiência dos sistemas de transportes através da superação dos gargalos logísticos.

A atuação do banco no setor ferroviário pós-privatização pode ser organizada em três fases distintas, segundo Villar & Marchetti. Na primeira fase, entre 1996 e 2000, o BNDES procurou promover a recuperação da via permanente e do material rodante das concessionárias e financiou operações com a Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN), América Latina Logística (ALL), Ferroban e Ferronorte.

Numa segunda fase, entre 2000 e 2007, o BNDES atuou para viabilizar o transporte ferroviário de commodities agrícolas e minerais, cujas exportações passaram a ser prioritárias para o país. Os principais investimentos estiveram voltados para o aumento da capacidade das vias permanentes, construção de terminais intermodais, terminais portuários (Teaçu, Terminal XXXIX, Coopersucar, Santos-Brasil e Cereal-Sul, no Porto de Santos) e aquisição de material rodante para concessionárias, empresas de leasing (MRC) e embarcadores (ADM, Cargill, Caramuru, Fiagril).

Os investimentos realizados buscaram, também, melhorar o acesso das ferrovias aos portos através da redução das interferências das linhas nos centros urbanos. As obras visaram eliminar passagens em nível, construir contornos ferroviários e equipamentos públicos (viadutos, mergulhões e passarelas) e vedar faixas de domínio (construção de barreiras físicas para isolar a via férrea das áreas urbanas). A terceira fase, verificada mais recentemente, estava relacionada à expansão da malha ferroviária através da construção da Ferrovia Norte-Sul (FNS) e Transnordestina.

Nos últimos 28 anos, o BNDES tem participado ativamente do setor ferroviário através do BNDES Participações S.A. (BNDESPar), que possui ações de diversas empresas relacionadas direta ou indiretamente com as operações ferroviárias (Vale, CSN e MRS, principalmente).

A participação do BNDES no setor ferroviário é contraditória, conflituosa e preocupante, já que o banco ajudou a definir o modelo de privatização, financiou as empresas para participar das privatizações e continua financiando as concessionárias das ferrovias com recursos ou com participações acionárias. Ao contrário do que se esperava com as privatizações, as concessões ferroviárias atuais são altamente dependentes da participação de instituições públicas.

Participantes do setor ferroviário

O sistema ferroviário que conhecemos atualmente é o resultado da participação de diversas empresas e instituições públicas e privadas que, após as disputas e consensos, definiram o planejamento das infraestruturas de transportes, os rumos dos investimentos e as velocidades das obras. A organização, o uso e a expansão das ferrovias no país dependem de uma grande quantidade de interesses (ver quadro), que muitas vezes são divergentes ou conflitantes entre si.

AgenteObjetivos gerais
EstadoAumentar a balança comercial através da exportação de commodities agrícolas e minerais
Agências reguladorasMelhorar a eficiência do sistema ferroviário e a transparência da prestação de serviços
Concessionárias de ferroviasAumentar a eficiência operacional e o lucro; transportar suas próprias cargas
Setor do agronegócioConstruir novas ferrovias em áreas produtoras de soja e milho
CidadesAtrair usuários de ferrovias (armazéns e indústrias); minimizar conflitos decorrentes das passagens dos trens
EmbarcadoresReduzir o custo de transporte
InvestidoresGarantir o retorno sobre o investimento
Indústria ferroviáriaFornecer material rodante e prestação de serviços
ConstrutorasConstruir ferrovias
Associações de preservação ferroviáriaResguardar o acervo das antigas companhias RFFSA e Fepasa
ChinaGarantir a oferta de soja e minério e fornecer material rodante e trilhos

Dentre as instituições públicas que participam diretamente no planejamento, construção e fiscalização das ferrovias, é possível destacar o Ministério dos Transportes, além da Ministério do Meio Ambiente, Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A*.

O setor privado participa ativamente na formulação das políticas de transportes através da Associação Nacional dos Transportes Ferroviários (ANTF), que representam os interesses das concessionárias, e Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga (ANUT), que reúne os embarcadores ou donos das cargas.

Outro grupo muito interessado na expansão das ferrovias no país está relacionado ao fornecimento de equipamentos e serviços ao setor ferroviário. As empresas estão representadas pela Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer) e Sindicato Interestadual da Indústria de Materiais e Equipamentos Ferroviários e Rodoviários (Simefre).

A preservação da memória ferroviária é realizada, principalmente, por entidades nacionais, regionais e locais como a Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF). O grande acervo de material ferroviário existente, guardado em dezenas de pátios ferroviários distribuídos pelo país, está sob responsabilidade destas associações sob autorização do DNIT.

Há outros interessados no desenvolvimento do setor ferroviário, envolvendo instituições financeiras, Fundos de Pensão, Tradings, empresas de consultoria e engenharia, construtoras e operadores logísticos. Algumas cidades, localizadas em regiões produtoras de commodities agrícolas ou próximas de portos exportadores, também se articulam para atrair investimentos para a construção de terminais ferroviários.

A diversidade de interesses e a complexidade das relações entre todas as instituições envolvidas ajudam a explicar a dificuldade ou a demora na liberação dos recursos públicos destinados à construção de novas ferrovias. É importante considerar, também, que estas infraestruturas de transportes são muito estratégicas para os grupos econômicos que monopolizam os grandes fluxos de produtos no território nacional. Portanto, verifica-se uma enorme disputa entre estes grupos para utilizar e controlar estes sistemas de transportes considerados mais eficientes.

Para entender o setor ferroviário é necessário estudar e analisar o papel e o posicionamento de todos os envolvidos no planejamento, construção, fiscalização e operação das ferrovias. Um dos principais protagonistas na organização deste setor é o BNDES.

  • Os nomes dessas instituições públicas podem ser diferentes, pois mudaram ao longo dos últimos governos

Os contratos de concessão das ferrovias

O processo de privatização das ferrovias iniciado no final do século XX resultou num sistema formado por 14 empresas ferroviárias. A operação destas ferrovias e os resultados esperados em termos de qualidade dos serviços prestados estão muito relacionados à estrutura dos contratos de concessão. Estas empresas podem ser agrupadas em quatro grupos principais de acordo com as características dos contratos.

No primeiro grupo, estão as empresas resultantes da privatização da RFFSA, com contratos firmados entre 1996 e 1998. São elas: Ferrovia Novoeste S.A. (atualmente Rumo Malha Oeste S.A.), Ferrovia Centro-Atlântica S.A., MRS Logística S.A., Ferrovia Tereza Cristina S.A., ALL-América Latina Logística do Brasil S.A. (atualmente Rumo Malha Sul), Companhia Ferroviária do Nordeste (atualmente Ferrovia Transnordestina Logística S.A.) e Ferrovias Bandeirantes S.A. (atualmente Rumo Malha Paulista S.A.). O contrato compreende a exploração e desenvolvimento do serviço público de transporte ferroviário de carga, por um período de 30 anos, com metas específicas para cada empresa concessionária referentes ao aumento da produção (TKU) e redução dos índices de acidentes.

No segundo grupo, formado pelas empresas EFC – Estrada de Ferro Carajás e EFVM – Estrada de Ferro Vitória-Minas, os contratos de concessão também têm vigência de 30 anos, mas incluem o transporte de passageiros. O terceiro grupo compreende as concessionárias que, além de explorar os serviços de transporte ferroviário, têm obrigação de construir a ferrovia. Estão neste grupo as empresas Transnordestina Logística S.A. e Ferronorte S.A., atualmente Rumo Malha Norte S.A., com vigência dos contratos de 30 anos.

O quarto grupo compreende as concessões ferroviárias realizadas recentemente, tais como Ferrovia Norte Sul e Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL), ambas concessões da estatal Valec S.A.

Apesar dos contratos de concessão terem como objetivo principal a prestação de serviços de transporte ferroviário, as cláusulas estão voltadas para a manutenção e garantia da operação ferroviária ou o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. As metas mensuráveis privilegiam a qualidade da operação e não a qualidade dos serviços de transportes. Os contratos tratam muito mais das relações entre o poder concedente (União) e as concessionárias, com poucas garantias ou obrigações sobre a qualidade dos serviços e o atendimento dos clientes ou usuários dependentes das ferrovias.

É importante destacar que os contratos de concessão estabelecidos contemplam metas globais de aumento da produção da malha concedida, ou seja, as obrigações quanto à quantidade de carga transportada estão relacionadas à totalidade da malha. As concessionárias passaram a atender essas metas globais, porém utilizando seletivamente a malha ferroviária, favorecendo os trechos mais produtivos e rentáveis.

Atualmente, há 15 contratos de concessão ferroviária vigentes, conforme apresentados abaixo.

FerroviaInício do contratoPrazo (anos)
Estrada de Ferro Paraná Oeste S.A.03/10/198890
Ferrovia Centro-Atlântica S.A.26/08/199630
Ferrovia Norte Sul Tramo Norte (FNSTN)20/12/200730
Ferrovia Tereza Cristina S.A.24/01/199730
Transnordestina Logistica S.A.22/01/2014Até 2027
Ferrovia Transnordestina Logística S.A. (FTL)30/12/199730
MRS Logística S.A.26/11/199630
Ferrovia Norte Sul Tramo Central (FNSTC)31/07/201930
Rumo Malha Norte S.A.12/05/198990
Rumo Malha Oeste S.A.01/07/199630
Rumo Malha Paulista S.A.01/01/199930*
Rumo Malha Sul S.A.01/03/199730
Estrada de Ferro Carajás (EFC)01/07/199730*
Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM)01/07/199730*
Ferrovia de Integração Oeste-Leste FIOL – Trecho 103/09/202135
Fonte: ANTT (2024) * Já renovado por mais 30 anos

A diversidade de contratos também não contribuí para a formação de um sistema ferroviário nacional, integrado e voltado para o atendimento das necessidades dos diversos interessados. Enquanto no passado a integração das malhas era dificultada pela diversidade de bitolas, no sistema atual o desafio é integrar os serviços devido à diversidade de contratos.