Trilhos em Piracicaba

Por um período de quase um século, Piracicaba manteve uma relação intensa e empolgante com os caminhos de ferro. Os trens participaram da vida dos piracicabanos de forma tão significativa que permanecem na memória de muitos até os dias atuais.

Eram novidades que representavam o progresso, pelos grandes benefícios proporcionados. Os trilhos ligavam a cidade a outros centros urbanos importantes, monopolizando o transporte de cargas e passageiros. O município contava com várias estações de companhias ferroviárias importantes no país, tais como a Ituana/Sorocabana e a Paulista. No distrito de Artemis, um porto com estrutura e pêra ferroviária era utilizado como terminal para a transferência de cargas entre ferrovia e as embarcações no rio Piracicaba.

Três linhas de bondes (tramways) também contribuíram muito para Piracicaba (Figura 1). Os trilhos cortavam a cidade em três linhas, facilitando a locomoção dos piracicabanos entre o centro e a Estação da Paulista, Vila Rezende e Escola Agrícola (Esalq). Os serviços entraram em operação em 1916 e perduraram por quase 50 anos.

Figura 1 – Bondes na Esalq/USP

Dois importantes produtores de açúcar de Piracicaba, a Usina Monte Alegre e o Engenho Central (Figura 2), utilizaram os trens em seus sistemas produtivos. Com uma rede bem estruturada, ligando os canaviais às usinas, o transporte de cana foi realizado com muita eficiência e sucesso.

Figura 2 – Trilhos no Engenho Central de Piracicaba

É importante destacar, também, que a cidade teve uma participação singular na produção de locomotivas. A primeira de fabricação nacional, de nome Fúlvio Morganti, foi construída na Usina Monte Alegre em 1938 por João Bottene, considerado o “gênio da mecânica”. Outras locomotivas importantes fabricadas por Bottene para o transporte de cana-de-açúcar na Usina Monte Alegre foram Maria Helena, movida a álcool, e Dona Joaninha (Figura 3), atualmente repousando numa praça em Guarulhos.

Figura 3 – Locomotiva Dona Joaninha (Foto: São Paulo Antiga)

A relação dos piracicabanos com as ferrovias está presente também na Paulista, bairro que recebeu este nome como referência ao prédio da estação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro inaugurado em 1922.

As referências históricas apresentadas mostram que, ao contrário do que muitos dizem até os dias atuais, Piracicaba nunca foi fim de trilho. Essa era uma visão limitada aos interesses das empresas ferroviárias.

Para a cidade, o que importa é que os trilhos ajudaram os piracicabanos em suas demandas, possibilitando construir diversas histórias de sucesso que gostamos de contar. Piracicaba tem o privilégio de ser o centro de muitas realizações importantes que contribuíram para o país. Se os piracicabanos entenderem a importância das ferrovias, talvez elas voltem a apitar novamente entre nossas colinas.

Paranapiacaba: a vila dos ingleses

Um dos mais importantes patrimônios ferroviários do Brasil está localizado na Vila de Paranapiacaba, município de Santo André. A história ferroviária do século XIX pode ser verificada na arquitetura e em grande parte dos equipamentos espalhados pelo pátio ferroviário.

Na parte alta da vila, logo na entrada, está a Paróquia de Sr. Bom Jesus de Paranapiacaba, fundada em 1889. Um pouco mais adiante, ainda na parte alta, há dezenas de prédios residenciais e comerciais de arquitetura europeia, organizadas em ruas estreitas e sinuosas.

Descendo uma ladeira, é possível ter uma visão geral do pátio ferroviário de Paranapiacaba, inaugurado em 1867 pela São Paulo Railway. Esta ferrovia tinha como principal objetivo transportar café do interior paulista ao porto de Santos. Os prédios, oficinas e estações localizados neste pátio foram criados para dar suporte ao sofisticado sistema funicular utilizado para que as composições pudessem vencer a Serra do Mar.

Devido à grande inclinação, os trens eram puxados por cabos de aço ligados a grandes máquinas movidas a vapor. Este sistema, desativado em 1982, é referência em diversas publicações sobre ferrovias, pela sua grandeza, complexidade e importância para a engenharia ferroviária mundial. Em 1974, foi inaugurado o sistema de cremalheira, utilizado atualmente por locomotivas elétricas por ser muito mais eficiente do que o funicular.

Muitas das construções existentes no pátio ferroviário foram erguidas com a utilização de materiais importados. A torre do relógio lembra muito a torre do sino Big Ben do Palácio de Westminster, em Londres (Figura 1). É a construção mais emblemática do pátio ferroviário. O relógio foi fabricado pela empresa inglesa Johnny Walker Benson.

Figura 1 – Vila de Paranapiacaba – Santo André (SP)

No alto de uma colina está localizada, estrategicamente, a casa do engenheiro chefe que era responsável por todas as operações do pátio ferroviário. Foi construída em 1897 para acompanhar a descida e subida dos trens e demais atividades nas oficinas e estações.

Há muitas placas de sinalização antigas, contendo inscrições como “sahida”, “prohibida” e “machina”, que permitem entender o português utilizado no século passado.

No pátio ferroviário há uma grande quantidade de material rodante antigo, tais como vagões de cargas, vagões de passageiros, veículos de linha e veículos de manutenção. Todos aguardando por restauro. No Museu do Funicular há equipamentos ferroviários utilizados no século XIX, tais como um vagão funerário e o carro utilizado pelo Imperador D. Pedro II.

Um trem formado por uma locomotiva a vapor e um vagão de passageiros de madeira pode ser utilizado pelos visitantes mediante programação. A locomotiva, da São Paulo Railway, é a de número 10, fabricada em 1867 pela Sharp Stewart Limited.

Figura 2 – Locomotiva Sharp Stewart Limited

A Vila de Paranapiacaba leva o visitante para um momento histórico muito importante do país, em que grande parte dos equipamentos, estruturas e organização do espaço era definida pelos ingleses para atender seus próprios interesses.

Engenharia ferroviária

Até meados do século XIX, a engenharia no Brasil estava limitada a construção de edifícios públicos, instalações portuárias, fortificações militares e algumas poucas indústrias. Todas obras de pouca complexidade para a engenharia, principalmente se considerarmos que os projetos e grande parte das estruturas utilizadas na construção poderiam ser importadas em sua totalidade.

A construção das ferrovias, por outro lado, trouxe grandes desafios e contribuições para a engenharia brasileira. Primeiro, porque as obras ferroviárias envolviam grandes distâncias, em regiões muitas vezes inexploradas e desconhecidas. A falta de mapas e o pouco conhecimento sobre o território brasileiro dificultavam o trabalho dos construtores de ferrovias.

Segundo, e diferentemente das rodovias, as estradas de ferro precisam ser construídas com rampas mínimas, para que o sistema roda-trilho funcione adequadamente. Se a inclinação não for respeitada, a tração da locomotiva é prejudicada e a roda motriz patina no contato com o trilho. Esta condição fundamental passa a exigir um traçado mais plano, possível através da construção de muitas pontes e túneis e da movimentação de grande quantidade de terra para a formação de cortes e aterros. Por ter utilizado tecnologias construtivas precárias, considerando a realidade do presente, as obras ferroviárias do passado são muito valorizadas atualmente.

No Brasil, há diversas exemplos que mostram os grandes desafios da engenharia na construção das estradas de ferro. A ferrovia entre Curitiba e o porto de Paranaguá, construída no final do século XIX, possui dezenas de obras de arte ferroviária importantes (túneis, pontes e viadutos) que ajudam os trens, até os dias atuais, a vencer a Serra Paranaense.

Para superar a Serra do Mar, fazendo a ligação entre o planalto paulista e o porto de Santos, a Ferrovia Santos Jundiaí (São Paulo Railway) construiu, em meados do século XIX, uma sofisticada obra de engenharia que envolvia quatro planos inclinados, viadutos, túneis e muros de arrimo. O sistema funicular utilizado era considerado, à época, o mais importante do mundo pela sua extensão (aproximadamente 8.100 m) e diferença de nível (800 m) (Figura 1).

Figura 1 – Museu do Funicular, Paranapiacaba, Santo André, SP

Mais recentemente, o 1º Batalhão Ferroviário do Exército Brasileiro construiu um dos viadutos ferroviários mais importantes para a engenharia mundial. Localizado no município de Vespasiano Corrêa, Rio Grande do Sul, o Viaduto 13 faz parte da Ferrovia do Trigo e foi inaugurado em 19 de agosto de 1978 (Figura 2). Também conhecido como Viaduto do Exército, possui 143 metros de altura e 509 metros de comprimento. As dimensões exageradas dos pilares de concreto revelam os desafios no transporte e manuseio da grande quantidade de material empregado na construção.

Figura 2 – Viaduto 13, Vespasiano Corrêa, RS

As grandes obras de engenharia no país, iniciadas a partir de meados do século XIX com as ferrovias, foram realizadas por engenheiros estrangeiros reconhecidos internacionalmente. Estes engenheiros contribuíram para a formação da engenharia brasileira e a organização de diversas instituições de ensino no Brasil. Estas e outras histórias da engenharia brasileira podem ser verificadas com mais detalhes nos dois volumes do livro História da Engenharia no Brasil, do autor Pedro Carlos da Silva Telles, editados pelo Clube de Engenharia do Rio de Janeiro.

A história da engenharia também está presente no patrimônio ferroviário formado por farto material rodante e por centenas de estações ferroviárias espalhadas pelo país, muitas delas com estruturas e equipamentos importados.

Situação das estações ferroviárias

O inventário realizado antes das privatizações das ferrovias na década de 1990 contabilizou a existência de 1.777 estações ferroviárias, distribuídas em todos as regiões do país. Deste total, o estado de São Paulo contava com 252 estações operadas pela Ferrovia Paulista S. A. (Fepasa). O patrimônio disponível, que compreendia também galpões, oficinas, pátios e obras de arte ferroviárias, ultrapassava dezenas de bilhões de reais.

O valor arquitetônico destas instalações e infraestruturas é incalculável (Figura 1), principalmente se considerarmos que as mais antigas foram construídas com material importado. Os trilhos, dormentes, pilares e vigas das estações, caixas d´água, portas e janelas, balanças e relógios, entre tantos outros equipamentos necessários para o funcionamento das ferrovias, são de procedência europeia, principalmente.

Figura 1 – Estação ferroviária de Joinville

As estações ferroviárias e demais instalações deveriam ser utilizadas para promover o setor ferroviário no presente. Mas não foi exatamente o que aconteceu. Nos últimos 20 anos, estas instalações se transformaram num grande passivo para a sociedade brasileira, gerando transtornos para as municipalidades e as concessionárias das ferrovias. Até os dias atuais, as estações continuam, em grande parte, sem utilização adequada.

As estações podem ser classificadas de duas formas. A primeira quanto a sua ocupação e situação e a segunda pela presença ou não de trens ou de linhas ainda em operação. No primeiro grupo, elas podem ser classificadas como abandonada, utilizada como escritório operacional das concessionárias das ferrovias, utilizada por instituições públicas municipais, transformada em museus e centros culturais, ocupada como moradia de desabrigados ou, até mesmo, demolida. Há casos em que existe uma utilização mista.

No segundo grupo estão as estações localizadas em linhas ainda em operação, com a passagem diária de trens de cargas e passageiros. Estas podem ser classificadas, também, em três tipos. No primeiro, as estações não possuem mais qualquer relação com a ferrovia (Figura 2). As portas e passagens que ligam o prédio à plataforma foram fechadas. Em alguns casos, a cobertura da plataforma foi retirada para que os modernos trens, muito mais altos do que no passado, possam passar. Neste caso, é possível afirmar que os municípios ou responsáveis pelas estações estão dando as costas para as ferrovias e esquecendo a importância da história.

Figura 2 – Estação Ouro, Araraquara, SP

No segundo tipo, as estações estão segregadas dos trilhos através de grades colocadas nas plataformas, mantendo uma relação parcial com a ferrovia atual. Os visitantes das estações, nesta situação, podem contemplar com segurança a passagem dos trens. Na terceira situação, as estações ainda realizam o transporte de passageiros, seja em serviços regulares como turísticos. É a situação ideal, pois permite trabalhar de forma plena a história das ferrovias em favor das transformações do presente.

Não existe um inventário oficial que apresente a situação atual das estações ferroviárias no país. Mesmo assim, são poucos os exemplos da utilização destes prédios e demais instalações para promover o setor ferroviário. O ideal seria dar um sentido mais nobre para estas estações, principalmente para resgatar histórias tão importantes para as regiões e cidades atendidas pelos trens.

Museus ferroviários no Brasil

Através da história é possível mobilizar a sociedade para a realização de ações transformadoras no presente. O programa de privatização das ferrovias brasileiras iniciada na década de 1990 desconsiderou esta questão e não criou instrumentos para que museus ferroviários fossem constituídos. Nos últimos 25 anos, portanto, grande parte do acervo material e imaterial ferroviário no país se perdeu.

Algumas iniciativas importantes, no entanto, conseguiram manter a história dos trens disponíveis e acessíveis aos cidadãos. Os serviços incluem passeios de trem, exposição de material ferroviário e centro documental das antigas ferrovias.

Um dos exemplos de preservação da memória ferroviária mais importantes do país é a Vila de Paranapiacaba, localizada no município de Santo André (SP). Foi construída para viabilizar a subida e descida dos trens na Serra do Mar, entre o porto de Santos e o planalto paulista. Possui um dos sistemas funiculares mais importantes do mundo, pela grandiosidade e complexidade, que atrai aficionados por trens de todos as partes do mundo.  A vila possui uma arquitetura que leva os turistas à Inglaterra antiga, principalmente pela torre do relógio que procura imitar o Big Ben londrino. Há diversos equipamentos ferroviários antigos em exposição, assim como oficinas e prédios que algum dia foram utilizados pela companhia ferroviária inglesa.

O Museu Ferroviário da Companhia Paulista, em Jundiaí (SP), apresenta aos visitantes prédios, oficinas e vasto material rodante, como marias fumaças, locomotivas e vagões de passageiros e de serviços antigos. O destaque deste museu é o acervo documental, disponível para consulta, de uma das empresas ferroviárias mais importantes do país.

Fundado em 1997, em Sorocaba (SP), o Museu Estradas de Ferro Sorocabana registra a história de uma outra importante ferrovia do país (Figura 1). A Sorocabana foi criada em 1875 para ligar a capital paulista à Sorocaba. O museu está instalado em imponente prédio próximo à estação ferroviária, com diversas peças, mobiliário, fotos e utensílios utilizados pela ferrovia. No museu há grande destaque aos fundadores e diretores da empresa.

A ocupação da região norte do estado do Paraná, realizada no início do século XX, tem uma relação muito grande com as ferrovias. As principais contribuições das ferrovias estão disponíveis no Museu Histórico de Londrina, inaugurado em 1986. No prédio da antiga estação ferroviária da cidade, inaugurado em 1950 e de arquitetura europeia, há um grande acervo de fotos, documentos, artefatos e equipamentos ferroviários, assim como uma maria fumaça e vagões de passageiros restaurados.

A evolução da engenharia brasileira está relacionada, também, à construção das ferrovias iniciada há mais de 150 anos no país. Um dos destaques pelo pioneirismo pode ser verificado na cidade paulista de Mairinque. O prédio da estação ferroviária é considerado o primeiro construído em concreto armado, em 1906, tendo um valor arquitetônico inestimável. Junto à estação há outros prédios e oficinas, alguns em atividade, e locomotivas antigas que podem ser visitados.

A cidade de Bauru era considerada um importante entroncamento ferroviário no oeste paulista, conectando as ferrovias Noroeste e Sorocabana. A estação imponente e o museu ferroviário proporcionam aos visitantes uma viagem ao passado das ferrovias. O acervo de material rodante disponível inclui as famosas locomotivas elétricas Russa, V8 e Vanderléia.

Há outras cidades no país que entendem a importância de resgatar a história das ferrovias e procuram realizar projetos para cuidar do patrimônio ferroviário existente. São ações fundamentais para explicar como a sociedade e as cidades brasileiras foram constituídas e organizadas no século XX.

Figura 1 – Museu da Estrada de Ferro Sorocabana, Sorocaba (SP)

Trens turísticos no Brasil

O patrimônio ferroviário no país é muito grande e está disponível em todos os estados em que a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) atuava. No estado de São Paulo, centenas de municípios atendidos pela antiga Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa) também possuem extenso patrimônio disponível. A melhor maneira de conservar este patrimônio histórico, formado por estações ferroviárias, material rodante e obras de arte (pontes e viadutos), é através da criação de trens turísticos.

Atualmente, há no país 17 trens turísticos e culturais operando regularmente, localizados nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Com extensão total de 500 km de linhas, estes sistemas transportaram em 2017 aproximadamente 1,7 milhão de passageiros.

De todos os sistemas disponíveis, quatro concentram 82% do total de passageiros transportados. O Trem do Corcovado, no Rio de Janeiro, foi inaugurado em 1884 e transportou em 2017 mais de 700 mil turistas em direção ao Cristo Redentor (REVISTA FERROVIÁRIA, 2017). O sistema de cremalheira permite subir os 3.829 metros de trilhos em rampa acentuada com muita facilidade.

O Trem do Vinho, que interliga as cidades da Serra Gaúcha Bento Gonçalves, Garibaldi e Carlos Barbosa, é o segundo com maior movimentação, totalizando mais de 340 mil passageiros transportados (Figura 1). A viagem de 23 km é realizada com muitas atrações que remetem às tradições gaúchas, envolvendo música gaúcha e italiana e degustação de vinhos e suco de uva.

Outra viagem que leva os passageiros ao passado ferroviário é realizada no Trem da Serra do Mar Paranaense, entre Curitiba e Morretes, num percurso de 70 km. Além das paisagens belíssimas e do contato com a natureza, o trecho de serra possui muitas obras de arte importantes, cuja construção no passado foi um grande desafio para a engenharia ferroviária brasileira.

O quarto trem turístico com maior movimentação de passageiros liga as cidades mineiras de São João Del Rei e Tiradentes, num percurso de 12,7 km. A Maria Fumaça e os vagões de madeira transportam, aproximadamente, 150 mil turistas ao ano. O trem Campinas-Jaguariúna também é muito conhecido e visitado pelos amantes do passado ferroviário.

Além de fomentar o turismo, estes sistemas ajudam a manter a memória ferroviária viva na mente das pessoas. O patrimônio ferroviário disponível e utilizado de forma adequada pode ser utilizado para ajudar a retomar o uso deste sistema de transporte de passageiros tão utilizado no mundo.

O turismo ferroviário existe no país, mas poderia ser melhor desenvolvido se políticas públicas específicas tivessem sido criadas na década de 1990 no momento em que ocorreram a privatização das estatais RFFSA e Fepasa.

O Ministério do Turismo disponibiliza a “Cartilha de orientação para proposição de Projetos de Trens Turísticos e Culturais”, voltado para auxiliar instituições públicas e privadas na elaboração de projetos e obtenção de recursos para a construção de trens turísticos e culturais. Clique aqui para acessar a catilha.

Figura 1 – Trem do Vinho em Garibaldi (RS)

A lista atualizada de trens turísticos, culturais e comemorativos está disponível no site da ANTT: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/passageiros/passageiros-ferroviarios/passageiros-ferroviarios

Heranças e culturas

O processo de privatização das ferrovias brasileiras, realizado na década de 1990, promoveu grandes mudanças no sistema ferroviário até então sob controle estatal. Os novos controladores do sistema passaram a privilegiar o transporte de commodities aos principais portos exportadores.

Para garantir o controle máximo dos fluxos destas commodities, a desestatização do sistema ferroviário brasileiro buscou eliminar diversas reminiscências e remanescências que não interessavam mais à realidade atual que se impôs. Em outras palavras, as políticas públicas passaram a atuar para suprimir diversas heranças materiais e imateriais que tinham utilidade no passado, mas que, no momento atual, não interessavam mais.

Estas heranças envolvem o traçado das vias, o material rodante, as estações ferroviárias, as passagens em nível, os prédios, as áreas urbanas, os sindicatos, a organização de funcionários e a dinâmica social e econômica da área ao redor das estações ferroviárias. A desestatização teve como objetivo rearrumar ou contornar essas heranças, muitas vezes chamadas de gargalos ou obstáculos, de tal maneira que os objetivos de competitividade dos diversos agentes envolvidos pudessem ser alcançados.

O processo de privatização praticamente eliminou o transporte de passageiros de longa distância e toda a infraestrutura utilizada na realização desse serviço foi abandonado e considerado, sem grandes questionamentos, como um grande problema. As estações ferroviárias existentes perderam a função e passaram a ser classificadas, a partir de então, como componentes que reduzem a fluidez das ferrovias.

As estações ferroviárias, utilizadas no passado para o transporte de passageiros, foram desativadas, demolidas, abandonadas ou reutilizadas para outros fins diferentes daqueles para os quais foram originalmente concebidos. Passaram a desempenhar outras funções e atividades, como museus e centros culturais controlados, em muitos casos, pelas prefeituras.

Além das estações ferroviárias, outros patrimônios ferroviários também foram desconsiderados e esquecidos pelo processo de privatização, tais como pátios de manobras, edifícios de manutenção e administração e material rodante (locomotivas elétricas, diesel e a vapor, vagões de cargas e passageiros e veículos de serviço) (Figura 1). A falta de uma política pública específica para tratar desse assunto está condenando um patrimônio valiosíssimo, em grande parte importado, que foi construído nos últimos 150 anos.

A privatização eliminou uma cultura ferroviária que passava de geração para geração, sempre acompanhada de sentimentos e emoções. Ao contrário do se imagina, o patrimônio histórico e cultural das ferrovias deve ser utilizado para promover o próprio uso do sistema ferroviário no presente. O processo de privatização não considerou a criação de um fundo, formado por contribuições das próprias concessões ferroviárias, para tratar da história das ferrovias. Enquanto essa realidade não se modifica, as associações que promovem a preservação ferroviária fazem o que podem.

Figura 1 – Trem elétrico da Fepasa abandonado

A melhor modalidade de transporte

Em diversos eventos técnicos sobre transporte e logística realizados na última década, um representante da ANTAQ – Agência Nacional de Transportes Aquaviário costumava perguntar aos participantes, no início de sua palestra, se todos os rios são navegáveis. A resposta da plateia costumava ser, em todas as ocasiões, negativa. O palestrante informava, no entanto, que o correto seria dizer que sim, pois o uso dos cursos dos rios como meio de transporte depende dos usuários e de seus objetivos e necessidades.

É mais ou menos desta maneira que devemos nos comportar ao pensar nas infraestruturas de transporte necessárias para atender a sociedade brasileira. A discussão sobre as melhores modalidades de transportes depende dos interesses dos atores que estão exigindo a construção das infraestruturas. Não existe uma opção melhor que outra, mas as mais adequadas para atender determinadas necessidades.

A lista de projetos de rodovias, ferrovias, hidrovias, portos e aeroportos incluídos no planejamento estatal visa atender alguns objetivos, que não necessariamente incluem as demandas de todos. Normalmente, a escolha destas modalidades segue alguns modelos, que precisam ser analisados com muita atenção e cuidado.

Com relação ao transporte de cargas, há três modelos normalmente utilizados para determinar as opções mais vantajosas. São eles: características das modalidades de transportes, características operacionais dos serviços de transportes e distâncias econômicas universais.

As modalidades podem ser comparadas de acordo com as seguintes características: topologia (flexível ou rígido), velocidade (baixa, média ou alta), capacidade de carga, custos fixos para a construção da infraestrutura e custos variáveis relacionados à sua operação.

Os serviços realizados pelas diferentes modalidades de transportes podem ser caracterizados pela velocidade, consistência (referente à eficiência no cumprimento dos tempos previstos), capacitação (capacidade de movimentar diferentes volumes e tipos de produtos), disponibilidade (número de locais em que a infraestrutura está disponível) e frequência (número de viagens por unidade de tempo).

O modelo conhecido como distâncias econômicas universais considera a distância mais adequada economicamente com relação ao valor do frete. Segundo este modelo, o uso das rodovias para o transporte de cargas é mais indicado para distâncias até 500 km, as ferrovias entre 500 e 1.200 km e hidrovias acima de 1.200 km.

Estes três modelos são utilizados amplamente no planejamento das infraestruturas de transportes no país para fundamentar as escolhas mais adequadas, mas também como justificativa para realizar a mudança da matriz de transportes.

A partir destes modelos, e ao contrário do que muitos podem pensar, a modalidade rodoviária é a mais interessante, principalmente porque o frete não é a única variável determinante para a escolha da melhor alternativa. O uso destes modelos depende das necessidades que se pretende atender, envolvendo região geográfica, tipo de produto e destino da carga (mercado interno ou externo).

Portanto, os rios não são navegáveis para a grande maioria dos especialistas em logística porque todos estão limitados à necessidade do agronegócio exportador. Para aqueles que pensam de forma mais ampla, todos os rios são navegáveis.

Transporte de cana-de-açúcar no rio Tietê

Público ou privado

O sucesso das ferrovias brasileiras é apresentado por especialistas e participantes do setor como resultado dos investimentos realizados pelas concessionárias, ou seja, pelas empresas privadas que assumiram o controle do sistema a partir de 1996. Além disso, há um consenso geral de que o fracasso da ferrovia nacional na segunda metade do século XX está relacionado ao baixo investimento estatal e má gestão da empresa pública RFFSA. São duas afirmações pouco realistas, que servem apenas para colocar em lados opostos o público e o privado.

O que a história tem demonstrado, no entanto, é que não há garantias de que a gestão privada das ferrovias é melhor do que a pública. Dois casos emblemáticos podem ser usados para demonstrar isso. O primeiro está relacionado às concessões ferroviárias britânicas e o segundo à situação da americana Amtrak, responsável pelo transporte ferroviário de passageiros de longa distância.

Os problemas das concessões privadas britânicas vieram à público após um grave acidente ocorrido em 2000, que vitimou muitas pessoas. Especialistas analisaram o caso e produziram diversos livros e artigos na tentativa de explicar porque as concessões privadas não estavam funcionando.

Andrew Murray, em seu livro Off the rails – Britain’s great rail crisis, relacionou diversos pontos que ajudaram a explicar os problemas na operação privada das ferrovias de passageiros. O modelo de concessão adotado na década de 1990 considerava que a subdivisão da malha em diversas empresas aumentaria a competição no setor de transportes de passageiros e melhoraria os serviços para os usuários. Empresas menores, segundo os defensores do modelo de privatização, seriam mais fáceis de gerir.

Seguindo o processo de privatização, os serviços de transportes, que entre 1948 e 1994 eram de responsabilidade da estatal British Rail, foram distribuídos em quatro grupos de empresas privadas: proprietária da infraestrutura, responsável pela manutenção da infraestrutura, proprietária de empresas ferroviárias e operadoras dos serviços de transportes. A fragmentação da malha e dos serviços em dezenas de empresas tornou a operação do sistema ferroviário muito mais complexa, principalmente na questão das obrigações e responsabilidades.

A privatização também contribuiu para o fim da cultura ferroviária existente, que sempre primou pela segurança das operações de transportes. Algumas concessionárias tinham como sócias empresas de ônibus, que levaram para as ferrovias modelos de gestão totalmente inadequados para a prestação de serviços de transportes por trem. A qualidade da manutenção ficou comprometida, também, pelos baixos investimentos realizados, já que a preocupação maior estava nos lucros da concessão, e o excesso de terceirização dos serviços.

As críticas à americana Amtrak, serviço estatal de transporte de passageiros criado em 1971, são constantes, principalmente porque ela continua apresentando déficits bilionários em seus resultados anuais. Os defensores da privatização propõem a subdivisão da empresa em empresas menores e a eliminação de trechos de menor tráfego, em áreas rurais, por exemplo.

Em Amtrak Privatization – The Route to Failure, Elliot D. Sclar procura demostrar que a Amtrak não deve ser gerenciada como um negócio, mas como um serviço público cujos benefícios sociais, ambientais e econômicos não podem ser contabilizados pelo sistema de cobrança de tarifas. Para esse pesquisador, governos investem em ferrovias devido à facilidade em alcançar o centro das grandes cidades, eficiência energética (baixo consumo de energia por passageiro), independência do petróleo, segurança nacional (transporte redundante) e questões ambientais.

Esses e outros exemplos mostram que a disputa entre os modelos de gestão público e privado não tem sentido, pois os objetivos de cada um deles são totalmente diferentes. Na escolha do melhor modelo, o que importa são os benefícios sociais, a satisfação dos usuários dos serviços e o equilíbrio entre todos os interesses envolvidos.

Gargalos logísticos

As discussões sobre novos investimentos em sistemas de transportes estão sempre relacionadas à necessidade de eliminar ou minimizar diversos gargalos existentes em várias partes do país. O termo gargalo logístico é muito utilizado atualmente, mas a realidade que ele representa é muito antiga. Quando fluxos de produtos ou pessoas não estão adequados de acordo com determinadas referências, os pontos de estrangulamento passam a ser considerados gargalos.

Esta é uma realidade presente em vários países, envolvendo todas as modalidades de transportes, seja para transporte de cargas como de passageiros. As restrições existentes podem estar relacionadas a limitações infraestruturais ou normativas. Como as necessidades dos países estão sempre em transformação, a organização dos territórios é constantemente alterada para eliminar os obstáculos que impedem ou limitam o fluxo de mercadorias, pessoas, informações e capitais.

Gargalo logístico é um conceito muito utilizado nos discursos para justificar os investimentos em sistemas de transportes mais eficientes, como as ferrovias. O assunto está muito limitado aos fluxos de produtos mais significativos, principalmente de commodities agrícolas e minerais. É historicamente localizado e tem prazo para ser eliminado. Quando um gargalo é equacionado, um outro é colocado no topo da lista de prioridades. Os gargalos podem ser verificados em todas as regiões do país, mas apenas alguns são efetivamente resolvidos.

No setor ferroviário, a prioridade das concessionárias no início das concessões estava relacionada às interferências das linhas férreas nos perímetros urbanos, que limitavam a velocidade dos trens. A solução foi construir alguns contornos ferroviários, tais como os de Araraquara (SP) e Três Lagoas (MS). Outros ainda aguardam o início ou a conclusão das obras, como os contornos das cidades de Joinville (SC), São Francisco do Sul (SC), Ourinhos (SP), Divinópolis (MG), Jaraguá do Sul (SC). O mais esperado de todos é o Ferroanel, na região metropolitana de São Paulo.

As velocidades dos trens no país ainda são muito baixas devido a outras limitações infraestruturais, tais como dificuldade de integração da malha antiga com a nova, baixa qualidade da malha existente (traçado e manutenção), qualidade duvidosa da malha nova recentemente construída e centenas de passagens em nível ainda sem sinalização.

Mas os gargalos logísticos mais difíceis de solucionar são os de caráter normativo ou que tratam das relações entre os agentes participantes do setor ferroviário. Há diversas questões não resolvidas, que atrapalham ou prejudicam o funcionamento das ferrovias. São eles: contratos de concessão que privilegiam a operação do sistema e não a prestação de serviços, monopólio no controle e operação do sistema e dificuldade de acordos sobre direito de passagem e tráfego mútuo.

Os gargalos apresentados colaboram negativamente para a construção de um sistema ferroviário integrado, voltado para a prestação de serviços, atendendo de forma mais ampla outros setores econômicos e transportando uma maior variedade de produtos.

Passagem em nível em Sumaré (SP)