Entendendo as ferrovias brasileiras

O sistema ferroviário da atualidade pode ser analisado e entendido a partir das condições de sua organização, uso e regulação. Estas condições foram definidas utilizando como referência a organização, uso e regulação do território segundo Antas Junior e Ramos & Castillo. A organização pode ser verificada pela maneira como as ferrovias estão distribuídas no território. O uso está relacionado aos serviços de transporte oferecidos e os fluxos de produtos praticados. A regulação, por sua vez, trata das relações entre os diversos agentes participantes do setor, mediadas pelas leis, normas, regras e discursos vigentes.

Metodologia para analisar as ferrovias brasilerias

Há uma diferença muito grande entre a organização do sistema ferroviário e o uso do sistema ferroviário. A organização mostra as estruturas e recursos disponíveis, que podem ou não ser utilizados pelos usuários, concessionárias e poder concedente. Ela representa um uso potencial, que não necessariamente será efetivado. A organização é alterada, principalmente, quando novas linhas, terminais e pátios ferroviásrios são construídos.

O sistema atual compreende aproximadamente 29 mil km de linhas concessionadas a partir de 1996, além de alguns trechos recentemente construídos, como da Ferrovia Norte-Sul, entre Açailândia (MA) e Anápolis (GO), e o prolongamento da Ferronorte no Mato Grosso, entre Alto Taquari e Rondonópolis.

As ferrovias estão organizadas, basicamente, em duas malhas principais. A malha antiga, construída e remodelada nos últimos 150 anos, possui bitola de um metro. É formada por uma infinidade de infraestruturas construídas em épocas diferentes, que foram se sobrepondo de acordo com condições muito particulares de cada momento. É formada por trechos sinuosos e possui muitas interferências ao longo das linhas. As interferências mais comuns são as passagens em nível, invasão de faixa de domínio, estações ferroviárias abandonadas e trechos em áreas urbanas.

A malha nova foi construída em bitola larga (1,6 metro) e possui traçados mais adequados. Por ser de construção recente, há poucas interferências nas regiões atendidas pelas linhas. A realidade estre estas duas malhas são muito diferentes, influenciando na qualidade da operação e dos serviços prestados.

É difícil tratar as ferrovias brasileiras como um sistema, pois as malhas existentes não necessariamente estão interligadas. A dificuldade de interligação não está relacionada apenas à diferença de bitolas, mas de regras operacionais e comerciais praticadas pelas empresas concessionárias. É importante, portanto, analisar como as ferrovias estão sendo utilizadas.

Cidades e ferrovias

No Brasil, as ferrovias tiveram um papel importante na organização da região oeste do estado de São Paulo. Elas foram construídas no século XIX para atender o escoamento da produção de café destinada às exportações, mas contribuíram, também, para a criação de muitas cidades do interior paulista.

A relação histórica entre ferrovias e cidades, no entanto, passou por momentos distintos no país. Até a primeira metade do século XX, aproximadamente, as ferrovias tinham uma relação muito positiva com as cidades, principalmente por exercerem o monopólio dos transportes terrestres. As cidades dependiam das ferrovias e funcionavam muito em função dos horários de chegada e partida dos trens. Grande parte das novidades chegava pelas estações ferroviárias.

Na segunda metade do século XX, com a redução do tráfego de trens e o abandono de muitos ramais, trechos e infraestruturas, as ferrovias se revelaram um problema para grande parte das cidades cortadas pelos trilhos. Foi um momento em que grandes investimentos foram realizados nas regiões urbanas para a construção de viadutos destinados à transposição de trilhos e pátios ferroviários pouco utilizados.

No período atual, a reativação dos trens e o aumento dos fluxos de composições promoveu uma nova alteração na relação entre cidades e ferrovias. As cidades passaram a ser consideradas pelas concessionárias um obstáculo para a operação das ferrovias, já que as áreas urbanas e as passagens em nível (Figura 7) interferem nos fluxos das composições, reduzindo a velocidade média dos trens.

Passagem em nível em Sumaré (SP) – 2008

As áreas urbanas cortadas por linhas ferroviárias estão enfrentando, também, um novo desafio, pois as composições, alcançando quilômetros de extensão, atrapalham o funcionamento das cidades principalmente por conta das passagens em nível. A cidade para quando composições com até 1,5 quilômetro de comprimento se transformam em muros, impedindo a passagem de pedestre e veículos de um lado da cidade para o outro. Como no passado, a cidade volta a funcionar novamente de acordo com os horários das empresas ferroviárias, porém, neste caso, de forma conflituosa e negativa.

Os traçados das novas ferrovias em construção indicam que não é prioridade dos trens atender as regiões de maior atividade econômica no país e as principais cidades dos estados do Sul e Sudeste. O sistema ferroviário atual está sendo utilizado para transportar commodities aos portos, exigindo o isolamento das linhas através da construção de corredores de exportação.

As ferrovias do momento atual não promovem as mesmas transformações no território de momentos anteriores. A relação atual entre estações ferroviárias e cidades mudou de conteúdo e sentido, dificultando fazer qualquer relação direta entre investimento em ferrovias e desenvolvimento econômica e social. Esta nova realidade faz com que as cidades fiquem cada vez mais distantes fisicamente e politicamente das ferrovias.

Expansão do sistema ferroviário brasileiro – a partir de 2007

O quarto e atual período da história das ferrovias brasileiras teve início em 2007 com a retomada de grandes projetos visando a construção de ferrovias em praticamente todas as regiões do país.

Com o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em 2007, foi possível realizar grandes mudanças institucionais para favorecer a construção de novas ferrovias. Em 2008, o Plano Nacional de Viação (PNV) foi atualizado e passou a relacionar 15 mil quilômetros de novas ferrovias, interligando o território e indicando para a criação de um verdadeiro sistema ferroviário nacional.

Produção de soja e novas ferrovias (2007)

Os traçados do sistema proposto no PNV foram orientados e definidos para atender, principalmente, as necessidades do agronegócio exportador. O objetivo das novas ferrovias é interligar regiões de grande produção de commondities agrícolas aos portos exportadores. Os trechos ferroviários previstos seguem a expansão da fronteira agrícola no Cerrado e fortalecem os corredores de transporte e exportação.

No atual período, verifica-se um aumento da participação de empresas estatais no setor ferroviário brasileiro. Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. e banco BNDES, por exemplo, participam ativamente como construtores, financiadores ou sócios de muitas ferrovias.

A construção ou expansão das ferrovias de responsabilidade de empresas privadas não aconteceram. A conclusão da Transnordestina, ferrovia de 1.753 km de extensão e de responsabilidade da CSN, está atrasada e sem data para inauguração. A expansão da Ferronorte, que até 2015 era operada pela América Latina Logística (ALL), foi cancelada e os trechos previsto devolvidos para a União em 2010.

O processo de privatização iniciado em 1996 foi estruturado para evitar o monopólio do sistema ferroviário. No atual período, no entanto, verifica-se uma consolidação do controle das concessões ferroviárias em três empresas: Vale, CSN e Rumo. Além de controlar o sistema, definindo regras comerciais e operacionais, elas privilegiam o transporte de suas próprias cargas.

A única ferrovia de expressão construída e em operação a partir de 2007 é a Ferrovia Norte-Sul (FNS), no trecho entre Açailândia (MA) e Porto Nacional (TO). Com uma extensão de 720 km, é operada atualmente pela VLI, empresa do grupo Vale S. A.

O sistema ferroviário vigente é limitado a poucos objetivos, agentes, produtos e regiões de abrangência. Em outros países, usados como referência, as ferrovias são utilizadas de forma mais ampla pelas empresas e cidadãos. A realidade das ferrovias brasileiras pode ser positiva para as concessionárias, mas não significa, necessariamente, que está adequada para o país.

Desestatização e recuperação seletiva das ferrovias – 1996 a 2007

O terceiro período da história das ferrovias brasileiras teve início em 1996 com a desestatização do sistema e a realização das primeiras concessões ferroviárias à iniciativa privada. Esta desestatização também não foi um acontecimento isolado, mas verificado em vários países do mundo, como no Japão, em 1987, e na Inglaterra, em 1994.

A principal motivação para a privatização das ferrovias está relacionada às prioridades de inserção do país aos mercados internacionais via exportação de commodities agrícolas e minerais. Com relação ao agronegócio, a prioridade está no transporte de soja produzida em várias partes do Cerrado. As ferrovias, construídas em momentos anteriores de forma extravertida, ligando o interior aos portos, foram eleitas como a melhor alternativa para atender esta nova prioridade.

Localização do Cerrado

O uso da malha ferroviária neste período foi realizado de forma seletiva, privilegiando trechos mais produtivos e rentáveis. Os investimentos das concessionárias favoreceram o desenvolvimento dos corredores de exportação, formados por linhas ferroviárias perpendiculares ao litoral e de fluxo predominantemente unidirecional. Os sistemas passaram a operar de forma independente e funcional a uma reduzida variedade de produtos.

Do total de 29 mil quilômetros de malha ferroviária concessionada no período, apenas 10 mil passou a ser efetivamente utilizada. Os 19 mil quilômetros restantes foram praticamente abandonados ou subutilizados pelas concessionárias das ferrovias.

Nesse período, a reestruturação realizada melhorou a eficiência operacional das ferrovias, já que o volume transportado aumentou significativamente sem praticamente construir novas linhas.

É um período de grande preocupação com as diversas interferências verificadas entre os trens e áreas urbanas, passagens em nível e invasões de faixa de domínio. Como as interferências comprometem os fluxos das composições, reduzindo a velocidade média dos trens, as cidades passam a ser consideradas pelas concessionárias um obstáculo para a operação das ferrovias.

O processo de concessão do sistema ferroviário brasileiro resultou num aumento da produtividade das ferrovias, mas também contribuiu para o abandono de dois terços da malha, a desativação do transporte de passageiros de longa distância, o abandono ou demolição de grande parte das estações ferroviárias e a consolidação de um monopólio nos serviços de transportes.

O final do terceiro momento da periodização do sistema ferroviário é verificado quando as prioridades dos investimentos em sistemas de transportes no país se voltam para a construção de novas ferrovias, orientadas pelo agronegócio, em praticamente todas as regiões do país.

Decadência e readequação das ferrovias – 1957 a 1996

O segundo período da história das ferrovias brasileiras teve início em 1957, com a estatização de grande parte das empresas ferroviárias e a constituição da estatal RFFSA, e se estendeu até 1996, com o processo de desestatização do sistema ferroviário e da realização das primeiras concessões para o setor privado.

Assim como foi verificado com o desenvolvimento das ferrovias no século XIX, o declínio, decadência e estagnação das ferrovias também foi um fenômeno mundial, resultando, assim como no Brasil, na nacionalização de empresas ferroviárias privadas. O monopólio exercido pelas ferrovias com relação aos transportes terrestres de bens e pessoas em várias partes do mundo chega ao fim.

No Brasil, um dos principais acontecimentos que caracterizam esse segundo momento está relacionado à industrialização e à necessidade de priorizar a integração do território para a criação e o fortalecimento de um mercado interno. A partir de 1930, a sociedade agroexportadora se torna inviável e passa a priorizar os investimentos em indústrias.

Nesse contexto de franca industrialização e formação de um mercado interno unificado, na segunda metade do século XX, as ferrovias foram praticamente abandonadas por falta de cargas, já que o traçado das ferrovias, voltado para os portos exportadores, não atendia aos requisitos de integração do mercado nacional.

O desafio do país nesse segundo período passou a ser, principalmente, a distribuição de produtos manufaturados de São Paulo para o restante do Brasil, possível apenas através de uma ampla malha rodoviária. Como consequência, as cargas e os passageiros foram gradativamente migrando para o modal rodoviário e as indústrias, seguindo essa mesma lógica, começaram a se estabelecer às margens das rodovias.

Distribuição de produtos industrializados pelo sistema rodoviário

Os principais objetivos das políticas públicas verificados nesses 40 anos do segundo período foram sanear o sistema ferroviário, racionalizar a operação e desativar trechos inviáveis ou deficitários. Na década de 1950, existiam 40 empresas ferroviárias operando de forma deficitária, de um total de 44 (LOPES e SOBRINHO, 1951). A solução encontrada foi a unificação das linhas com a criação das empresas estatais RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) e Fepasa (Ferrovia Paulista S.A.).

O segundo período chega ao fim quando a sociedade passa a priorizar a inserção do país aos mercados internacionais via exportação de commodities agrícolas e minerais, com uma ocupação mais sistemática de porções do Cerrado por uma agricultura moderna. Um novo momento da história das ferrovias se inicia quando as ferrovias são eleitas como a melhor alternativa para atender ao transporte dessas commodities.


LOPES, J. C.; SOBRINHO, B. M. Dois estudos sobre transportes. Rio de Janeiro: Bibliex, 1951.

A Primeira Revolução Chandleriana

O desenvolvimento das ferrovias no início do século XIX promoveu grandes transformações sociais em diversos países no mundo. O momento foi tão marcante que os autores Bressand & Distler, em 1995, chamaram o período compreendido entre o início do século XIX e início do século XX de Primeira Revolução Chandleriana (BRESSAND & DISTLER, 1995). Foi uma maneira de homenagear Alfred Chandler, autor do livro The Visible Hand, The Managerial Revolution in American Business, que trata das mudanças no mundo dos negócios promovidas pelas ferrovias nos Estados Unidos da América.

As ferrovias contribuíram para o início de uma nova sociedade, de uma nova relação entre agentes, países e regiões e para uma organização espacial muito mais complexa. Esta nova realidade alterou profundamente as relações econômicas entre diferentes localidades, reduziu a distância medida em tempo e custo e formou grande parte das cidades que conhecemos atualmente. Com as ferrovias foi o começo do fim do isolamento das pessoas e das regiões em diversos países.

As trocas mercantis aumentaram e contribuíram para o surgimento de regiões especializadas em determinado tipo de produto. As empresas, até então de abrangência local, passaram a atuar nas escalas nacional e internacional. A organização das empresas foi possível, também, graças ao uso do telégrafo, que evoluiu junto com as ferrovias.

A partir do surgimento das empresas ferroviárias, um novo ambiente normativo foi sendo instituído para regular o funcionamento das ferrovias e da dinâmica do sistema. As normas definiram também grande parte do funcionamento da sociedade e das regiões, que passaram a ter como parâmetro de organização e de circulação os horários e os traçados das ferrovias.

O emprego dessas novas técnicas, a ferrovia e o telégrafo, permitiu a aceleração do fluxo de pessoas e de bens materiais e imateriais, como informação, relatórios e cotações de preços. Utilizada primeiramente pelas empresas e organizações, essas técnicas permitiram as primeiras percepções da instantaneidade e da possibilidade da ação à distância quase que de forma imediata. Para o Geógrafo Milton Santos, foi o início da convergência dos momentos e de um novo uso do tempo e do espaço (SANTOS, 2002a). Os avanços foram tremendos, porém a instantaneidade percebida não era completa, total, como a do período atual, pois ainda o tempo era estabelecido por intermediários que tinham seus horários de funcionamento e atrasos na distribuição dos sinais utilizando os sistemas de comunicação da época.

A Primeira Revolução Chandleriana foi o período que deu início à emergência de espaços mais racionais e ao processo de transportar o nacional, e depois o universal, ao local. As ferrovias não só ligavam os lugares ao mundo, como ligavam o mundo aos lugares. E isso se dava através da troca de mercadorias, de ideias, de informações, de normas e de experiências. As ferrovias ajudaram, também, na origem de um complexo sistema de divisão internacional do trabalho, devido ao incremento da produtividade nos transportes (FURTADO, 1974).

O surgimento das ferrovias promoveu uma revolução tão grande que alguns autores subdividiram a circulação interna em primitiva, para o período anterior ao advento das ferrovias, e atual, para o período que compreende o uso das ferrovias e rodovias modernas (SILVA, 1949). Antes das ferrovias, a circulação interna estava restrita às técnicas de navegação fluvial e por canal, que tinham uma topologia mais rígida, pouco flexível, proporcionando velocidades reduzidas. Através das ferrovias, o território pôde ser integrado e os tempos de viagem encurtados tremendamente.

Os sistemas de transporte evoluíram consideravelmente após o surgimento das ferrovias e, na mesma direção, foram a organização de empresas e países. As escalas de planejamento mudaram, possibilitando a unificação das ações e a especialização e diferenciação das regiões. A valorização e desvalorização dos espaços é marcante nesse período de evolução das ferrovias e as dinâmicas das regiões, dos países e da sociedade se transformaram. O poderio mercantil, que estava restrito principalmente aos portos, avança agora sobre o interior dos territórios com grande velocidade.

O surgimento das ferrovias contribuiu, também, para a organização das relações comerciais e sociais entre regiões, países e continentes. Modificaram, também, a configuração territorial de muitos países, como foi o caso dos Estados Unidos da América que, na segunda metade do século XIX, conseguiram integrar o país e transformar a atuação das empresas de regional para nacional e depois para internacional (CHANDLER, 1998).

No Brasil, as ferrovias tiveram um papel importante na organização da região oeste do estado de São Paulo. Elas foram construídas para atender o escoamento da produção do café destinada às exportações, mas contribuíram também para a criação de muitas cidades do interior paulista. O geógrafo francês Pierre Monbeig foi um dos pesquisadores que trataram deste assunto. Para ele, sobre o oeste paulista é mais exato falar em regiões ferroviárias, que de regiões geográficas ou econômicas (MONBEIG, 1984). Através das ferrovias, novas cidades foram criadas e muitas outras ganharam uma importância regional. A criação de cidades e regiões só foi possível porque as ferrovias exerceram o monopólio dos transportes terrestres. Atualmente, esta função está sendo realizada pelas rodovias.

No período apresentado, cada país participou da revolução proporcionada pelas ferrovias de uma maneira muito particular. Alguns integraram seus territórios, ligando as principais cidades com o objetivo de transportar cargas e passageiros. Outros, construíram sistemas ferroviários funcionais à atividade exportadora de commodities. A história tem demonstrado que as respostas foram diferentes em cada país pela forma como as ferrovias foram construídas e organizadas.

Enquanto nos Estados Unidos da América as ferrovias contribuíram significativamente para criar um mercado interno, no Brasil as mesmas foram utilizadas para transportar produtos selecionados, de baixo valor agregado, aos mercados europeus. Sistemas ferroviários voltados à exportação de commodities foram construídos em vários países do mundo, principalmente nas ex-colônias europeias.


BRESSAND, A; DISTLER, C. La planète relationnelle. França: Flammarion, 1995.

CHANDLER, A. Ensaios para uma teoria histórica da grande empresa. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.

FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

MONBEIG, P. Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984.

SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2002.

SILVA, M. M. F. Geografia dos Transportes no Brasil. Serviço Geográfico do Instituto de Geografia e Estatística. Rio de Janeiro: IBGE, 1949.

Desenvolvimento das ferrovias – 1835 a 1957

Para compreender o período de desenvolvimento das ferrovias no país, que vai de 1835 a 1957, é necessário analisar como estava organizada a sociedade e a economia brasileira na primeira metade do século XIX.

O território era formado por um conjunto de arquipélagos (ARAÚJO, 2000; BARAT, 1978; COUTO E SILVA, 2003), cujas economias regionais eram independentes e não se relacionavam entre si. As diferentes regiões estavam interligadas às economias europeias, sendo, portanto, um prolongamento de sistemas econômicos maiores. As ferrovias foram construídas, no período analisado, para atender demandas de uma sociedade agroexportadora.

O desenvolvimento das ferrovias no Brasil teve início em 1832 através da Lei 100, de 31 de outubro de 1835, que autorizava a Regência a fazer concessões para as empresas que se propusessem a construir estradas de ferro entre Rio de Janeiro e Minas Gerais e entre Rio Grande do Sul e Bahia. A primeira ferrovia, Estrada de Ferro Mauá, foi inaugurada somente em 1854 no Rio de Janeiro.

Mas foi o café, produto que dominou a economia nacional no período de desenvolvimento das ferrovias, que mobilizou diversos investimentos na criação de empresas ferroviárias. De uma forma geral, as linhas foram construídas para interligar as regiões produtoras de produtos primários aos portos exportadores, com seus traçados, em grande parte, perpendiculares ao litoral.

Relação das ferrovias com os portos em 1910 (PASSOS, 1952)

Numa tentativa de desenvolver as estradas de ferro, foram promulgadas as leis de garantia de juros e das subvenções quilométricas. Estas leis foram um incentivo à ineficiência na construção e operação das ferrovias (TELLES, 1994), fazendo com que as estradas fossem as mais baratas possíveis, sem recortes, túneis e pontes e, consequentemente, com muitos desvios e curvas.

Nesse período de 123 anos, o monopólio das ferrovias no transporte de cargas e passageiros era uma realidade. Foram construídos, aproximadamente, 35 mil quilômetros de linhas. Os sistemas independentes, que não seguiam um plano de conjunto, resultaram numa grande diversidade de bitolas e material rodante. A integração das malhas não era prioridade, portanto, não existia de fato um sistema ferroviário nacional.

A decadência das ferrovias brasileiras foi o resultado de diversos acontecimentos surgidos a partir da crise de 1929. O principal deles foi o declínio das exportações do café, que contribuíram para a inviabilização econômica das ferrovias. Com a tentativa de recuperação e readequação das empresas ferroviárias, através da criação da estatal RFFSA em 1957, inicia-se o segundo período da história das ferrovias brasileiras.


ARAÚJO, T. B. Dinâmica Regional Brasileira nos anos Noventa: Rumo à Desintegração Competitiva?. In: CASTRO, I. E; MIRANDA, M.; EGLER, C. A. G., (org.). Redescobrindo o Brasil: 500 anos depois. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.

BARAT, J. A evolução dos transportes no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE: IPEA, 1978.

COUTO E SILVA, G. Geopolítica e poder. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2003.

PASSOS, E. Plano Nacional de Viação e Conselho Nacional de Transporte (Projetos nº 326-A e 327 de 1949). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1952.

TELLES, P. C. da S. História da Engenharia no Brasil (Séculos XVI à XIX). Rio de Janeiro: Clavero, 1994.

História das ferrovias no Brasil

Atribuir à indústria automobilística a responsabilidade pelo fim das ferrovias brasileiras na segunda metade do século XX é simplificar a história brasileira. A realidade sobre este assunto é muito mais complexa e precisa ser melhor analisada e apresentada.

Para entender as ferrovias brasileiras é preciso considerar, inicialmente, que os sistemas de transportes no mundo são uma demanda da sociedade, que muda com o tempo não apenas como resultado do uso de novas tecnologias, como ferrovias, aviões e automóveis, mas, também, pelas transformações econômicas, financeiras e geopolíticas verificadas no mundo.

É necessário considerar, também, que a história do sistema ferroviário nacional está relacionada a um movimento mundial mais abrangente, que também aconteceu em outros países. De uma forma geral, nos últimos 200 anos, as ferrovias no mundo passaram por três momentos distintos: desenvolvimento, decadência e retomada. Cada país atuou de forma muito particular nestes diferentes momentos, seguindo seus próprios caminhos e construindo histórias exclusivas.

Um terceiro ponto importante para entender a história das ferrovias está relacionado à forma como as mesmas foram inicialmente construídas e aos usos definidos durante sua implementação. As escolhas iniciais, portanto, foram fundamentais para a formação da história ferroviária de cada país.

Os EUA, por exemplo, construíram uma malha ferroviária visando o transporte de diversos produtos, principalmente aço e querosene de iluminação. Para atender o transporte destes produtos de consumo local, as ferrovias passaram a interligar as principais cidades entre si, formando redes de transportes do tipo solar, christalleriana ou de múltiplos circuitos.

Enquanto isso, no Brasil, as ferrovias foram construídas para atender a exportação do café, que foi o produto dominante em todo o período de desenvolvimento das ferrovias. Até a década de 1930, aproximadamente, a sociedade brasileira era caracterizada como agroexportadora e as infraestruturas de transporte foram construídas para seguir esta lógica. A malha ferroviária brasileira foi estabelecida, em grande parte, perpendicular ao litoral, extravertida, ligando regiões produtoras de produtos primários aos portos exportadores, formando redes do tipo dendrítica.

Rede dendrítica (CORRÊA, 2001)

As três considerações apresentadas são fundamentais para explicar como as ferrovias brasileiras foram organizadas e utilizadas nos períodos de desenvolvimento, decadência e retomada.


CORRÊA, R. L. Trajetórias Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001.

Início das ferrovias no mundo

É difícil afirmar com precisão quem inventou a ferrovia, pois as principais partes que compõem este sistema de transporte foram criadas em épocas diferentes. A utilização de guias ou trilhos para facilitar a movimentação de cargas é conhecida há milhares de anos. As unidades motrizes a vapor, por outro lado, foram inventadas mais recentemente, no início da Revolução Industrial. Quando estes dois elementos se encontraram, as ferrovias que conhecemos atualmente começaram, efetivamente, a se desenvolver pelo mundo.

Civilizações antigas já sabiam que rodas se movem mais facilmente em superfícies lisas e sem declividade, que é um dos princípios básicos que garantem o funcionamento das ferrovias. Gregos e Romanos já utilizavam sulcos em caminhos de pedras para facilitar a passagem de veículos (LOXTON, 1972). Um dos mais conhecidos é o Diolkos, caminho pavimentado por pedras com 6,3 km de extensão, aproximadamente, construído no ano 700 a. c. Foi utilizado por mais de 600 anos para cruzar o Istmo de Corinto, na Grécia, permitindo que embarcações pudessem passar por terra do Golfo de Corinto ao Golfo Sarónico. Foi um atalho criado para evitar a circunavegação da península Peloponnese. Atualmente, neste mesmo lugar, há um canal navegável que desempenha a mesma função do Diolkos.

Também era de conhecimento geral que a colocação de tábuas de madeira nos sulcos criados nas estradas pelas rodas das carruagens reduzia os esforços dos cavalos (ibdem). A resistência ao movimento ficava muito menor. O uso de trilhos de madeira partiu desta constatação. Entre os anos 1600 e 1800, há diversos casos de sistemas de movimentação com trilhos de madeira voltados para o transporte de carvão nas minas inglesas e em outros países da Europa.

Até final do século XVIII, as ferrovias eram tracionadas pela força humana, cavalo ou cabos ligados a um motor estacionário. Com a invenção dos motores a vapor na segunda metade do século XVIII e o seu desenvolvimento realizado, principalmente, pelo britânico James Watt, a tração animal começou a ser gradativamente substituída por unidades a vapor independentes e de grande capacidade de força.

Outras contribuições surgiram em seguida para que as ferrovias se desenvolvessem. O inglês Richard Trevithick criou, em 1807, a primeira locomotiva a vapor que operou numa ferrovia. Com o objetivo de atrair o interesse do público, ele montou uma pista circular para que os londrinos pudessem experimentar o passeio em carros abertos tracionados por uma locomotiva a vapor, conhecida como Catch Me Who Can, algo como Pegue-me quem puder (Figura 1). Ingressos eram cobrados dos frequentadores que se interessassem em participar deste momento diferente e único.

Pista curcular montada por Richard Trevithick em 1807

Em 1800, a patente dos motores a vapor de propriedade da empresa Boulton & Watt expirou, o que motivou outros interessados a desenvolver alternativas mais eficientes e potentes. Nesse início do século XIX, verificou-se, portanto, uma grande competição para ver quem desenvolvia a melhor locomotiva a vapor. Eventos públicos com grande presença de interessados eram organizados para que engenheiros e inventores pudessem apresentar suas novidades. Um dos nomes mais influentes à época, o engenheiro inglês Robert Stephenson, apresentou sua Rocket (foguete) num evento em 1829, sagrando-se vencedor em todos os quesitos (ibdem). A partir da Stockton & Darlington Railway, inaugurada em 1825 e considerada a primeira ferrovia pública de passageiros, o desenvolvimento das ferrovias no mundo não parou mais.

Brasil fora dos trilhos #1

Nunca se investiu tanto em ferrovias no mundo como nas últimas décadas, tanto na ampliação de linhas como na reforma de sistemas mais antigos.

O maior exemplo desse investimento vem da China, país que construiu em pouco tempo uma rede de trens de alta velocidade com mais de 40 mil quilômetros de linhas.

Também chama muito atenção as notícias positivas que chegam do Japão, que é um dos países que mais investe em tecnologia ferroviária. Em 2024, será comemorado o aniversário de 60 anos do Trem Bala, ou Shinkansen.

Enquanto isso, no Brasil, os investimentos em ferrovias ainda não estão acontecendo como poderia se esperar. São muitas promessas e projetos e poucos serviços foram efetivados e colocados em operação.

A edição de julho e agosto de 2023 da Revista Ferrovia destacou em seu editorial mais uma preocupação que confirma a distância do nosso país com o que o mundo está praticando.

“O fato de o governo federal anunciar no novo PAC investimentos públicos de R$73 bilhões em rodovias e menos de 10% disso (R$6 bilhões) em ferrovias sacramenta o quanto a sociedade brasileira está distante de perceber a importância em aumentar a participação das ferrovias na matriz de transportes nacional.”

A prioridade pela opção rodoviária evidencia ainda mais a condição do nosso país como o mais atrasado do mundo em termos de uso de ferrovias. Paises mais organizados socialmente estão há muito tempo investindo em ferrovias, buscando por sistemas de transportes mais baratos e menos poluentes.

Os artigos que serão apresentados a partir de agora no Ferrovia e Sociedade são uma tentativa de explicar para a sociedade brasileira porque o Brasil ainda não adotou o trem como o principal sistema de transporte de cargas e pessoas.